André Ventura é novo demais para ter conhecido na pele o que foi, no seu sufocante dia-a-dia, o Estado Novo, de Oliveira Salazar. Mas isso não é desculpa que sirva: eu também não vivi o nazismo mas não finjo não saber o que foi. André Ventura não ignora — apenas mente, omitindo os factos — que o regime anterior era corrupto até à medula, era corrupto por natureza e da forma mais amoral possível.
A corrupção não se pagava habitualmente em dinheiro, pagava-se com empregos ou oportunidades de negócio, de um lado, e com lealdade política, do outro.
A “cunha”, o “empenho”, a “palavrinha”, era aquilo que o corruptor de baixo buscava, dando em troca juras de fidelidade a Salazar. Era assim, por exemplo, que a PIDE recrutava muitos dos seus, que lhe chegavam pelo empenho do primo do ministro, do chefe local da Legião ou do partido único, ou mesmo do padre da aldeia. Vir para Lisboa trabalhar na PIDE era mais do que um emprego: era uma forma de promoção pessoal e social e um lugar de poder e intimidação.
Em troca, os novos recrutas começavam o “estágio” por participarem “voluntariamente” nas sessões de espancamento dos presos políticos, subindo depois na escala da lealdade e das patifarias (e por isso é que em 25 de Abril de 74 não havia pides inocentes).
Mas também havia a alta corrupção, aquela reservada exclusivamente aos fiéis do regime, não apenas aos lugares superiores da Administração Pública (onde só se acedia mediante uma jura de fidelidade), como igualmente aos grandes negócios, no continente e nas colónias, depois de demonstrada suficientemente a obediência inquestionável a Salazar.
António Champalimaud atreveu-se a discordar e pagou isso com anos de exílio. Salazar, um homem intelectualmente cobarde, incapaz de enfrentar a discordância e mesmo o debate, foi o grande corruptor da nação, um corruptor de almas e de consciências, a pior das modalidades de corrupção (“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/a podridão lhe agrada e os seus discursos/têm o dom de tornar as almas mais pequenas.”)
Ventura não é ignorante, como finge para melhor cativar a legião de ignorantes que votam no Chega, nem é, menos ainda, estúpido, como outros que o rodeiam. Duvido muito que seja até saudoso do salazarismo ou de um regime como foi o do Estado Novo. O que ele é, sim, é um oportunista e um demagogo sem freio nem vergonha. Para corromper almas e conquistar votos entre a turbamulta dos alienados que o seguem, ele não tem escrúpulos em dizer-lhes tudo o que eles querem ouvir, seja o elogio de Salazar ou o de Estaline, se vier a propósito.
Sim, já oiço os “chegados”dizerem: este é um texto elitista de quem despreza o povo que vota no Chega e que se acha superior só porque leu uns livros e viu uns filmes (e não tem redes sociais).
Pois bem, lamento desarmá-los logo: este é mesmo um texto elitista e, sim, eu tenho um profundo desprezo pelo povo do Chega. Mais, não acredito no futuro feliz de uma nação em que o “povo” — ou os políticos como Salazar ou Trump — se empenha numa batalha mortal pelo silenciamento das suas elites. São elas que fazem progredir os países, são elas que lançam as discussões que interessam para o futuro dos povos e para um mundo fundado na liberdade e na justiça. O povo, esse, está mais interessado e mobilizado em votar nas eleições no Benfica do que em votar para defender a democracia nas eleições políticas. E quando o povo ou os políticos obtêm êxito no silenciamento e afastamento das elites, triunfa a mediocridade, o oportunismo e a obediência de rebanho.
De facto, eu não tenho grande admiração pelos portugueses, fui deixando de a ter à medida que eles próprios se foram achando cada vez melhores. Claro que conheci e conheço alguns portugueses notáveis, na sua profissão ou nos seus princípios, mas raramente vi serem-lhes reconhecidos e aproveitados os seus méritos. Ser pensionista, ser sindicalista da Função Pública ou ser influencer das redes sociais é mais reconhecido e mais gratificante. É por isso que eu jamais seria capaz de fazer política, de andar por aí, de aldeia em aldeia, a escutar respeitosamente o estimado povo, gritando que bons que eles são e que horrendos que são os políticos “corruptos” — o discurso de André Ventura. Não, definitivamente não enxergo a superioridade patriótica da ignorância militante ou a vantagem do saudosismo ditatorial.
Neste recente debate parlamentar sobre a nova lei da nacionalidade — feito sob bullying do Chega e cagaço do PSD — o que mais me impressionou pelo ridículo foi a ideia passada por toda a direita de que adquirir a nacionalidade portuguesa é um privilégio raro, como se fôssemos um país de excelência e de referência onde toda a gente quer viver e de que toda a gente gostaria de ser nacional — não podendo, infelizmente para eles, sentirem “o mesmo sangue português a correr nas veias”, na imortal declaração da deputada Cristina Rodrigues, do Chega.
Como país de excelência, convém recordar que, a despeito da imensa carga fiscal a que o Estado recorre todos os anos para sustentar o seu sempre maior desvario despesista e a clientela eleitoral dos Governos, nada do que é importante e que o Estado deveria assegurar funciona: a saúde, a educação, a habitação, o investimento público, a justiça, o combate aos incêndios, as fronteiras dos aeroportos, o que quer que seja.
Apostamos tudo na monoindústria do turismo de massas, mas nem sequer somos capazes de montar um sistema decente para que os turistas não precisem de horas para passar a fronteira. Não estamos particularmente motivados para fazer filhos ou trabalhar, preferindo antes depender de mão-de-obra importada e mal paga, mas ainda nos damos ao luxo de tratar os imigrantes como indesejáveis e de afixar cartazes a avisá-los de que “Isto não é o Bangladesh” (querendo sugerir o quê? Que se vão embora e deixem avançar para as suas tarefas o povo trabalhador do Chega?).
Passaremos a exigir agora aos candidatos “à honra e responsabilidade” de se tornarem cidadãos portugueses (Luís Montenegro dixit), além de saberem falar a língua e estarem cá há 10 anos, conhecimentos da cultura portuguesa, da organização política e valores democráticos da sociedade portuguesa e uma declaração escrita de “adesão aos princípios da República” — coisas que raros votantes e poucos deputados do Chega seriam capazes de ultrapassar sem batota.
Na verdade, os portugueses não têm assim tantas razões de queixa: acreditam que os dinheiros europeus, que nos sustentam há 50 anos, nunca terão fim; acreditam que nunca terão de ser eles a lavar as ruas, tratar dos velhos, apanhar frutos vermelhos ao sol de Verão, andar a pôr tijolos nas casas de que os nossos filhos têm necessidade; acreditam que podem tratar do alto da burra quem veio para cá fazer tudo isso, porque eles, felizes por estarem a viver num país tão extraordinário como Portugal, tudo encaixarão sem se irem embora, e acreditam ainda que, apesar de se trabalhar cada vez menos e pior, a situação deles vai ter obrigatoriamente de melhorar — nem que para isso seja preciso recorrer ao fantasma de Oliveira Salazar ou ao espantalho de André Ventura. Tudo visto, só se arrisca a democracia, que não é assim tão importante. Mas numa coisa somos bons: a fazer ditados para as ocasiões. Como este: nunca sirvas quem serviu."
Miguel Sousa Tavares, Expresso, 30/10/2025
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