Rádio Freamunde

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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Peguei num texto que publiquei em tempos no DN Madeira e reescrevi-o, porque me pareceu pertinente:


𝗨𝗺 𝗦𝗮𝗹𝗮𝘇𝗮𝗿
Saudades. Sempre as saudades. Como se fossem o ar que respiramos, o fado que nunca acaba, a corda que nos puxa para trás quando o mundo insiste em andar para a frente. Saudades de Salazar, dizem, e o nome vem com o peso dos olhos cansados, com o cheiro da naftalina e da roupa guardada em baús, saudades da sombra, da escuridão, da miséria transformada em virtude, da fome baptizada de "simplicidade". Saudades do tempo em que o país era pequeno, pobre, medroso, medroso, e obediente. Com a cabeça baixa e o chapéu na mão acreditava-se que tudo aquilo era normal. Saudades da sopa de cavalo cansado, da broa dura que rachava os dentes, do milho com restos de espada, da sardinha partilhada por quatro, do bacalhau fiado na mercearia e pago a prestações quando o ordenado chegava... se chegava. Saudades dos casebres sem chão, sem luz, sem água, onde a diarreia matava mais do que qualquer doença estrangeira.
E havia as mães que perdiam filhos antes dos cinco anos como quem perde lenços: "tive dez, morreram-me seis, ficaram-me quatro", dizia-se sem choro, sem drama, porque o drama era o pão de cada dia. Havia os miúdos com raquitismo, com poliomielite, com as pernas em arco de tanta fome, havia os velhos que não passavam dos sessenta, enquanto na Suécia já se prometiam setenta e cinco anos de vida. Havia as chuchas de pano embebidas em vinho e açúcar para calar as crianças. Havia as escolas primárias com carteiras riscadas, as janelas a cair, os professores de régua na mão, a palmatória, a menina-de-cinco-olhos, a chapada na cara como método pedagógico, porque pensar era perigoso, e aprender a escrever e a rezar bastava. Havia o exame da quarta classe como a fronteira para o abismo. Havia as raparigas ensinadas a costurar e os rapazes ensinados a obedecer. Havia a humilhação como disciplina nacional.
E havia o silêncio, que era a música de fundo do país. Não se falava. Não se dizia. Não se sonhava. O lápis azul riscava jornais, cortava beijos de filmes, apagava canções e livros. A PIDE escutava cafés, escutava casas, escutava os pensamentos, com bufos em cada esquina, com celas prontas para os atrevidos. O medo era a gramática da vida. Dizem saudades, mas o que havia era isto: fome, miséria, silêncio e medo. Era este o país que tinham e é este o país que alguns ainda suspiram ter de volta.
𝗗𝗼𝗶𝘀 𝗦𝗮𝗹𝗮𝘇𝗮𝗿𝗲𝘀
Saudades, dizem eles, como quem acaricia um cadáver, saudades do tempo em que a moral se confundia com proibição, em que viver era uma lista de não-podes, não-deves, não-fazes. Saudades das mulheres que precisavam de autorização para casar, para sair do país, para trabalhar, para existir. Saudades do divórcio proibido, da homossexualidade tratada em manicómio, da virgindade vigiada pela família, do marido que podia matar a mulher em flagrante adultério e ser compreendido pelos tribunais, enquanto a mulher, se ousasse, ia direita à prisão. Saudades da juventude vigiada no liceu, das mini-saias proibidas, dos biquínis censurados, das calças à boca-de-sino banidas como armas de destruição moral. Saudades da Coca-Cola proibida, dos Beatles interditos, do beijo cortado no "Casablanca", da vida filtrada por um regime que temia a pele, o som, o riso, como quem teme uma bomba.
Saudades também da "justiça", essa palavra transformada em caricatura: tribunais plenários onde não havia defesa, prisões arbitrárias, tortura como rotina, assassinatos escondidos em relatórios com letras frias. Saudades de Caxias, do Tarrafal, da Guiné, onde os presos eram ossos sem nome. Saudades da rede de bufos, dos vizinhos a denunciar vizinhos, da desconfiança instalada como hábito, de um povo a viver de olhos baixos para não chamar a atenção. Saudades de um país onde a polícia política era uma sombra em cada mesa de café.
E havia a economia, se é que se pode chamar assim à estagnação. O Estado decidia tudo: que fábricas abrir, que máquinas mudar, que produtos vender. Para acender um isqueiro, licença; para montar uma bicicleta, licença; para substituir uma máquina numa empresa, licença. O condicionamento industrial como prisão, os monopólios garantidos, os produtos caros e maus, o país parado. Saudades da exportação ridícula, da agricultura medieval, do pão racionado, do salário de operário que não dava para alimentar uma família. Saudades da professora que precisava da autorização do Estado para casar, da enfermeira proibida de ter marido.
E havia a corrupção, sempre a corrupção, tão funda que se confundia com o chão. Os alvarás vendidos e trocados como cartas de baralho, os negócios do Estado feitos para os amigos, os escândalos abafados, o Ballet Rose varrido para debaixo do tapete, os Donos Disto Tudo a passear impunes. O nepotismo como lei, a cunha como passaporte, a miséria como normalidade. Dizem saudades, mas o que havia era isto: proibição, censura, violência, corrupção, um país reduzido a sombras.
𝗧𝗿𝗲̂𝘀 𝗦𝗮𝗹𝗮𝘇𝗮𝗿𝗲𝘀
Saudades, repetem eles, como se não se lembrassem do que era ter o país encharcado em bairros de lata, famílias inteiras em casas de cartão, zinco e madeira, empilhadas como lixo humano à volta de Lisboa, com cheiro a esgoto, sem água, sem luz, sem nada. Saudades das cheias de 1967, quando as enxurradas arrastaram casas e gente, quando morreram largas centenas (oficialmente 462, mas todos sabiam que eram muitos mais) e o regime respondeu com silêncio, com indiferença, com a frieza burocrática de quem vê a morte como estatística. Saudades de um Estado que não mexia um dedo para ajudar, e onde a caridade privada servia de substituto ao que chamavam governo.
E havia a saúde, se é que se podia chamar saúde a um país de endireitas, bruxas, mezinhas, chás de ervas. Havia a tuberculose a levar famílias inteiras, a cólera a rebentar nos bairros, a mortalidade infantil a ser regra e não exceção. Não havia médicos, não havia hospitais, não havia centros de saúde. Quem os procurava tinha de andar quilómetros, a pé, com os pés descalços, com as crianças doentes ao colo, e muitas vezes voltava de mãos vazias porque não havia nada. Saudades disso, dizem, da miséria transformada em rotina.
E havia a guerra, a interminável guerra, treze anos de rapazes enviados para África, para morrerem por um império que já não existia. Milhares estropiados, mortos, enlouquecidos. Saudades dos barcos cheios de jovens com vinte anos, enviados como carne para a fogueira. Saudades dos cemitérios que se enchiam de corpos anónimos. Saudades da injustiça: os filhos dos ricos com adiamentos sucessivos, protegidos por estudos ou cunhas, acabavam nos escritórios militares, longe do mato, enquanto os filhos dos pobres iam morrer em combates sem glória. Orgulhosamente sós, dizia Salazar, e os mortos amontoavam-se.
E havia a emigração, o êxodo, um milhão de portugueses a fugir do país porque cá não havia futuro. Saudades dos comboios cheios para França, da humilhação na fronteira, dos subornos aos guardas, das famílias divididas, dos filhos deixados para trás. Saudades da grande viagem da classe média: a Badajoz, comprar caramelos, porque atravessar a fronteira já era aventura. Saudades da vergonha de um país reduzido a contrabando de guloseimas. Dizem saudades, mas o que havia era isto: barracas, doenças, mortos na guerra, mortos nas cheias, emigrantes aos magotes.
𝗠𝘂𝗶𝘁𝗼𝘀 𝗦𝗮𝗹𝗮𝘇𝗮𝗿𝗲𝘀
Saudades, insistem, como se fosse possível esquecer que o país era uma prisão com a chave do lado de fora, uma vitrina de província onde tudo era proibido e tudo era controlado. Saudades do lápis azul que riscava jornais, cortava frases inteiras, apagava poemas, riscando até a imaginação. Saudades da rádio que só passava nacional cançonetismo e fados tristes, da televisão que mostrava desfiles, inaugurações de nada, o Presidente do Conselho sentado como um cadáver com óculos, e mais nada. Saudades da informação que não informava, da cultura reduzida a propaganda, dos escritores perseguidos, dos músicos silenciados, dos pintores obrigados a pintar a pátria com cores que não existiam.
Saudades também do trabalho infantil, que não era exceção mas regra. Crianças a carregar tijolos, a apanhar batatas, a servir nas casas ricas, a viver no medo de uma reguada ou de uma fome maior. Saudades dos deficientes escondidos em casa, dos idosos abandonados a morrer em tugúrios, sem reforma, sem assistência. Saudades de um país sem segurança social até ao final dos anos 60, onde cada velho sem família era condenado à solidão e à miséria.
E havia o quotidiano da pobreza, o quotidiano da resignação. O pai a sair para o campo de enxada às costas, a voltar de noite com os pés desfeitos, a mãe a coser roupa até se lhe partirem os olhos, os filhos a dormir em esteiras no chão, todos a comer pão seco, caldo de nada, vinho de má qualidade. E se sobrava alguma energia, era para rezar, porque a religião era o único escape oferecido, a promessa de uma vida melhor, mas só depois da morte.
E havia ainda o grotesco dos "grandes feitos" do regime. Quase cinquenta anos de poder e a herança eram quatro barragens, uma ponte, uma auto-estrada que não chegava a Vila Franca, um viaduto que terminava em Gaia. Saudades dessa obra de país, sempre inacabada, sempre ridícula. Saudades de Sines, da Siderurgia Nacional, os elefantes brancos de uma industrialização improvisada que nunca funcionou. Saudades da agricultura medieval, dos campos do sul desertos, das terras do norte divididas em minifúndios improdutivos, da produção ridícula, da ausência de qualquer modernização.
𝗨𝗺 𝗦𝗮𝗹𝗮𝘇𝗮𝗿 𝗲𝗺 𝗰𝗮𝗱𝗮 𝗽𝗼𝗿𝘁𝘂𝗴𝘂𝗲̂𝘀 𝗱𝗲 𝗯𝗲𝗺
Saudades, repetem, como se não percebessem que o que recordam não é memória mas mito, um fantasma que lhes serve de conforto contra a desordem do presente. Saudades do medo, da disciplina, da obediência, da escravidão disfarçada de paz. Saudades de um país orgulhosamente sozinho, como se o isolamento tivesse sido glória e não condenação. Saudades da cadeira de vime onde o ditador se foi desfazendo em silêncio, enquanto o mundo inteiro mudava e Portugal permanecia parado, uma ilha de atraso cercada de modernidade.
Saudades de um tempo em que o povo baixava a cabeça, de chapéu na mão, humilde até à humilhação, agradecendo o pouco que tinha como se fosse dádiva divina. Saudades de uma moral castradora que dizia sempre não: não podes, não deves, não fazes. Saudades da vida sem escolhas, porque escolher exige responsabilidade, e a ditadura poupava o esforço de pensar. Saudades de um país sem futuro, mas com a ilusão de estabilidade, com a calma podre da resignação.
E ainda assim, dizem que eram tempos melhores. Melhores para quem? Para os ricos que continuaram ricos, para os donos de tudo que ficaram donos de mais, para os amigos do regime que tinham privilégios e impunidade. Para os outros, para a maioria, só havia fome, ignorância, medo, morte, exílio. Só havia a resignação transformada em virtude nacional.
O que resta da ditadura é isto: uma saudade perversa, uma nostalgia da escravidão, uma preguiça de viver em liberdade. A liberdade é incómoda, exige escolha, exige pensamento, exige confronto, exige responsabilidade. A ditadura oferecia silêncio e nada mais. E é esse nada que alguns hoje confundem com ordem.
Saudades, sim, mas não de Salazar. Saudades de quem morreu cedo sem nunca saber o que era viver, de quem emigrou sem nunca voltar, de quem foi torturado sem nunca ter justiça, de quem ficou reduzido a pó sem nunca ter voz. Saudades do que podia ter sido e não foi, do que perdemos nesses cinquenta anos de escuridão. Saudades da vida que nos roubaram.
Porque o salazarismo não deixou nada senão isto: um país encolhido, atrasado, miserável, uma colecção de medos e silêncios. E querer voltar a isso é desejar o túmulo, não a vida.
E no fim, as saudades de Salazar não são saudades do passado. São medo do presente. São medo da liberdade. São preguiça de viver.
Outubro 2025
Nuno Morna

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