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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

SALAZAR E OS SAPATOS:

Às vezes sinto-me mais velho do que o que sou. Fui criado por uma idosa cuja memória me formou (começou a ser professora em 1926, faz 100 anos, e nasceu em 1908).

Na verdade, hoje sou a pessoa mais velha das pessoas que se ligam por consanguinidade comigo com quem tenho relações.
Tenho um tio paterno mais velho, com quem não tenho relações, mas, depois, parentes sò tenho e irmãos e respetivas famílias.
Na infância, fui um exótico de uma família monoparental, numa famìlia com mãe de 30 e avó idosa, num tempo (1978) em que entrei para a escola e era o único filho de divorciados.
Fui exótico, durante uns 10 anos, até que os pais dos meus colegas se começaram a divorciar (e passei a ser conselheiro de alguns pela minha experiencia de "décadas").
O salazarismo e seus preconceitos, que demoraram a acabar, fez mal às mulheres da minha família como às restantes do país.
À minha mãe, que só se pode divorciar muito depois de isso ser obrigatório à sua liberdade e teve se suportar os custos sociais e económicos de ser abandonada pelo marido, grāvida e com um filho de 4 anos.
À minha avó, que correu aldeias e aldeolas, longe da famìlia como professora criada no republicanismo docente, mas a fazer de professora numa ditadura e não os poder salvar e educar todos.
E, com o seu dogma da elevação pela instrução, a conflituar com o trabalho infantil e a perpetuação da ignorância.
À minha tia, muito querida, falecida com 100 anos em 2016, que queria e tinha talento para ser pianista, mas não pode "porque não era para meninas".
Também fez mal aos homens.
Ao meu avô que perdeu a carreira militar.
Ao meu tio, que perdeu um ano de serviço e quase foi impedido de ser professor, por se insurgir contra chumbos políticos em exames (em 1933, curiosa data para quem gosta de as discutir).
E o sofrimento foi pouco (ninguém foi torturado ou passou fome) porque havia independência econòmica, capital social e instrução, entre os meus familiares.
Eramos uns privilegiados, em que há 4 gerações já havia gente na universidade.
Num paìs pobre, oprimido, sem cultura, infeliz.
Quem fala de Salazar, esquece o Salazarismo, realidade opressiva, cinzenta e culpada do atraso de décadas e da falta de liberdade.
Salazar é símbolo de algo, a que não queremos, nem podemos voltar, nem por analogia ou metáfora.
Por isso, a indignação com as zurradelas de quem o recorda como referência a que voltar.
Só ignorantes querem voltar a esse tempo simbolizado na personagem.
Uma infantilidade grunha que não tem nada em comum com infantilidade doce dos meus alunos, que querem voltar ao "tempo dos reis", ideia lírica que destruo a falar de dentes careados e da dor permanente que os reis sofreriam e que a modernidade resolve e afasta com um simples comprimido.
Salazar é uma cārie purulenta na memòria recente de Portugal.
A saúde não estava melhor com Salazar. Não havia acesso.
A educação não estava melhor.
A escolaridade não se cumpria, as turmas chegavam a ter 80 alunos (a minha avó teve várias) e Portugal foi dos poucos países que, depois de estipular 4 anos de escolaridade obrigatória reduziu para 3....
Escritores próximos do regime faziam louvores às virtudes do analfabetismo.
As casas eram piores, porque em 74 ainda eram em grande número de terra batida, sem sanitários.
Privilegiado, como toda a sequência familiar (que podia ter alguns atos de resistência, sem tanto medo, pelo estatuto social que a desigualdade do regime tolerava), quando era miùdo, nos anos 80, impressionava-me muito a história dos sapatos dos alunos da minha avó.
A minha mãe a contar que, na sua escola de aldeia, era das poucas alunas calçada.
Os miúdos que ìam levar cabras ao monte, nas turmas da minha avó, e íam para a escola descalços.....
E nunca a minha avó se gabou de uma coisa simples, que um ex-aluno me contou já velhote, rico, depois de emigrado (a salto) e grato até à reverência por causa de um par de sapatos.
Pagar sapatos aos alunos para poder fazer exame da 4ª classe e ter o cuidado de lhos dar dias antes para não lhe magoarem os pés ao fazer o ditado e a còpia.
Ou a frustração desgostosa, que a minha tia confessava, de saber que muitos alunos talentosos ficaram sem estudar porque eram de uma aldeia do Soajo e não havia dinheiro para todos irem ao exame e, mesmo que fossem e passassem, não havia onde estudar.
Ou o "orgulho" do meu tio de ter feito uma cantina numa escola para os miúdos não passarem tanta fome, em que o que se arranjava, mesmo a pedinchar, era sopita e macarrão.
E era preciso fazer a escolha diabólica de quem escolher ajudar.....
E Salazar achava bem que fosse assim (embora, quando jornalistas estrangeiros contavam ao mundo, chegasse a expulsá-los do país).
Tinha as "contas certas", favores aos amigos e muitos portugueses com a barriga a dar horas.
Sou anti-salazarista e mais anti-neo-salazarista (no meu tempo) porque não gostaria de andar na rua descalço.
E não gostaria de viver num país onde os governantes achem isso normal para crianças na escola ou seja para quem for.
E nunca vi, mas tenho memória disso.
Por isso, a História estudada faz falta.

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