(Por Brás Cubas, in Página Um, 28/04/2025)

Pois sim, senhoras minhas e senhores meus, pois sim. Eis o que sucedeu: apagou-se a luz e apagastes vós todos com ela. Ah, que maravilha! Que regalo sublime para mim, que nunca conheci a electricidade em vida, senão por escassos rumores e vãs promessas dos sábios do meu tempo, mas que, já falecido e bem acomodado no Além, tive notícia, com certa estupefacção zombeteira, de que afinal a dita cuja servia mesmo para alumiar casas!
Foi em 1883 — dois anos depois da minha morte, vede só que pontualidade irónica! — que a Rua do Ouvidor, essa mesma que tantas vezes percorri sem pressa e sem nexo, se viu iluminada não mais pelas tremeluzentes lâmpadas a gás, mas por luz eléctrica, faísca domesticada por engenheiros atrevidos, com o aplauso do nosso mui progressista D. Pedro II. Eu, cá do meu canto de defunto, ri-me. E ri-me porque, na minha vida inteira, sempre me bastou a penumbra das velas e a luz duvidosa das ideias, sem jamais suspeitar que um dia os homens viriam a tornar-se escravos de um fio e de uma tensão, como bestas presas a um cabresto invisível.

No meu tempo — oh, esse tempo tão escuro e afinal tão claro! —, não se usava electricidade, e livrei-me, tanto quanto pude, de outra novidade esotérica: o telefone! Sim, o telefone, essa maquineta que, diziam-me, transportava vozes também pelos fios como se fossem almas penadas em visita. No meu tempo, ouvi rumores dessa prodigiosa engenhoca concebida por um tal de Alexander Graham Bell, que teve a ousadia de querer abolir as distâncias com metal de Chipre e um bocal.
Soube que o nosso imperador D. Pedro II, homem dado a essas extravagâncias, até se deleitou com o engenho em 1877, apressando-se a trazê-lo para o Brasil como se fora coisa de utilidade pública. Mas dizei-me: que prazer haveria em falar com alguém sem o ver? Que confiança poderia haver numa conversa sem rosto, sem gestos, sem cheiros? Para mim, em vida, o telefone sempre pareceu um convite à mentira, um artifício para os tímidos, um substituto melancólico das cartas perfumadas e dos encontros marcados com hora e chá.
Enfim, bem sei que a electricidade e outras engenhocas de similar inquietude fabricaram carros sem cavalos, transmitiram vozes por entre os ares ou, ainda mais fantástico, projectaram imagens animadas em caixinhas que falam e mandam.

Nada disso me maravilha. Havia as cartas — essas, sim, perfumadas, com caligrafia pensada e lacre de bom tom —, que se esperavam com saudade. Havia convites entregues em mão para horas certas, e esperava-se o outro sem a ansiedade de notificações. Os encontros marcavam-se e cumpriam-se. No seu tempo, não se ligava a ninguém, não se estava ligado a ninguém, porque não havia o que ligar. E assim se vivia, donzelas e cavalheiros, com menos luz, é certo, mas com menos tremores de alma. Povos atrasados? Talvez. Povos mais sábios? Talvez também.
Pois vede o que vos sucedeu hoje nesta era de prodígios! Um apagão, um trambolhão da vossa deusa Electricidade — bastou isto para vos lançar na mais ridícula aflição. Em Portugal, esse reino que outrora desafiava oceanos e Adamastores, bastou que se quebrasse o fio vindo de Espanha — e vede só, vós que outrora lutastes contra Castela, agora vos pendurais e dependeis dos seus cabos! — para que tudo parasse. E não falo só das máquinas, senhoras e senhores, mas de vós mesmos, que, sem luz, vos perdeis como baratas desorientadas em salão de baile. Bastou esse estertor eléctrico pela manhãzinha, e desatastes em teorias da conspiração, metendo Putin e os extraterrestres, para em seguida aparecer um tropel aos hipermercados, como se o fim do mundo estivesse anunciado pelos querubins…
E que buscastes vós, donzelas e cavalheiros? Água, enlatados, e claro, o sagrado papel higiénico, esse símbolo dos vossos temores modernos, mais precioso que o ouro dos tempos antigos. Carrinhos cheios, e não de cultura, mas de conserva. A luz faltou-vos nas casas, mas também nos juízos. E vi-vos, eu, que nunca precisei de electricidade para existir, correrdes por entre prateleiras como se fosse preciso abastecer a arca para o Dilúvio. E que pena, senhoras e senhores! Que pena que as vossas baterias e os vossos geradores, esses pequenos Prometeus de ocasião, só bastassem para as caixas registadoras e não para os livros, que ficaram às escuras, como que a zombar da vossa pressa.
No meu tempo, faltava luz, porque era noite? Acendia-se a vela. Faltava notícia? Escrevia-se uma carta e aguardava-se pela resposta. Faltava o pão? Falava-se com o vizinho. Hoje, falta-vos luz, e faltam-vos as pernas, os braços, a alma. A electricidade tornou-se o vosso espírito, e, quando se vos apaga, sois mortos-vivos, mas sem a elegância de um defunto.
E assim, confesso: gozei, gozei muito, ao ver-vos entregues ao terror de um mundo sem luz. Porque não é a treva que vos mete medo, mas a vossa incapacidade de viver sem luz. Eu, que morri iluminado apenas pelas ideias vagas de um século sem fios, digo-vos: aprendei com o escuro. Ele vos ensina que a luz não está na parede, mas na alma. E que mais vale uma noite de sombras com espírito do que um dia claro numa cabeça vazia.
Até breve, e um piparote.
Fonte aqui.
Do blogue Estátua de Sal
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