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domingo, 19 de janeiro de 2025

Gaza: de cemitério a palco — Não acredito nesse Deus:

O Ocidente criou uma civilização de espetáculo. Todos os dramas e tragédias terminam com uma apoteose em direito. O guião destas cerimónias de falsidade, de cenários de papel e promessas feitas com mau hálito repete outros noutras épocas, noutras partes do mundo, mas com protagonistas com o mesmo caráter.

Escreveu o poeta António Aleixo
Esta mascarada enorme
com que o mundo nos aldraba,
dura enquanto o povo dorme,
quando ele acordar, acaba

O espetáculo de hoje na Palestina, véspera da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, de troca de prisioneiros e cessar fogo, leva-me ao poema de António Aleixo, da mascarada enorme. Uma mascarada enorme, previsível e com incontáveis antecedentes, sempre com os mesmos ingredientes: o do negócio, da falta de palavra, da violência entre os cruzados que constituíram a força de assalto para a tomada de Lisboa e as suas tropelias, vilanias e falsidade.

O cruzado R, de que se conhece apenas a inicial do nome, descreveu ao seu superior Osberto de Bawdsey, “as venturas ou adversidades desta nossa viagem e bem assim os feitos, os ditos, ou tudo o que, durante ela, virmos ou ouvirmos e for digno de relato.” Referia-se à conquista de Lisboa e aos acordos estabelecidos com os mouros e entre os cruzados.

A Lisboa mourisca rende-se aos cristãos. Os mouros gritam em grandes brados e, à nossa vista, depõem as armas, baixam os braços e suplicam tréguas, ao menos até ao dia seguinte. Foram concedidas tréguas e recebidos cinco reféns, tendo sido acordado em como durante a noite não atacariam as nossas máquinas ou como eles, entretanto, não procederiam a qualquer reparação que revertesse em nosso prejuízo; além disso, durante a noite, deviam deliberar como é que nos entregariam a cidade no dia seguinte; se é que era assim que queriam decidir entre eles, pois, caso contrário, o resto ficaria sujeito à sorte das armas.

De madrugada os comandantes dos cruzados, colonienses e flamengos, dirigiram-se ao acampamento do rei (Afonso Henriques), para ouvirem o que aquele teria deliberado. Os cruzados são favoráveis a entregarem a cidade ao rei e ficarem com o ouro, a prata e outros haveres dos habitantes da cidade. Entretanto, quando os cruzados estavam em assembleia para darmos a nossa resposta, os nossos marinheiros, com outros tresloucados a eles semelhantes, juntam-se na praia em conspiração montada por um certo sacerdote de Bristol, homem sacrílego. “Começaram eles paulatinamente a incitar à revolta, desde simples falas até chegarem a vociferar, para declararem que era indigno que tantos e tão grandes homens, ilustres na sua terra e nos feitos militares, se sujeitassem a estar a mando de uns poucos reunidos em assembleia, aos quais, nas circunstâncias presentes, não seria propriamente necessário conselho, mas valentia. Na realidade, os que tinham até ali chegado, trazidos pelo Espírito Santo fosse o que fosse que tivessem feito, tinham agido de modo excelente, sob a sua inspiração.”

Os reféns, por sua parte, tendo-se dado conta de que os nossos tinham entrado em disputas, dissimulam e intentam retratar-se das palavras da primeira proposta. Ao rei e aos seus homens diziam que pretendiam guardar a sua palavra e manter todas as promessas que anteriormente nos tinham afiançado; aos nossos, nem com a morte algo fariam, pois tinham-se apercebido que éramos corruptos, desleais, sem piedade, cruéis, que nem os nossos próprios senhores poupávamos. Tudo isto deixou os nossos prostrados na maior vergonha. De novo se voltou a conselho com o rei; passou-se nisso a maior parte do dia e ao fim anuíram os reféns no seguinte: o alcaide, com um genro seu, ficaria de posse de todos os seus bens em liberdade e todo e cada um dos homens da cidade ficaria com o que tinham para comer e a cidade render-se-ia; de contrário, tentariam a sorte das armas.

Os normandos e bem assim os ingleses, para quem os incidentes de guerra tinham sido particularmente gravosos, cansados do longo cerco, diziam que seria razoável aceder e que não seria honesto antepor o dinheiro ou os víveres à honra de tomar a cidade. Os colonienses e os flamengos, por sua parte, com a sua inata cupidez de deitar a mão, lembravam o desgaste de uma longa viagem e a perda dos seus bens como o longo caminho a percorrer ainda, argumentavam que não era admissível deixar alguma coisa aos inimigos. Chegados a este ponto de discussão, por último, acediam a que todos os haveres e mantimentos do alcaide lhe fossem concedidos, com excepção de uma égua árabe que o conde de Aerschot cobiçava para si e se propunha tirar-lhe sob que pretexto fosse. Finalmente, a este respeito, a opinião deles tornou-se inabalável, os nossos suportavam-na com grande indignação.

No dia seguinte, porém, decidiram tentar a entrada na cidade à força das armas e voltaram todos ao acampamento. Entretanto os colonienses e os flamengos mostram-se indignados, porque parecia que o rei era benevolente para com os reféns, e saem armados dos acampamentos para, à força, roubarem os reféns ao acampamento do rei e se vingarem neles. Gera-se confusão e embate de armas por todo o lado. Nós, pela nossa parte, estando no meio, entre o rei e os acampamentos dos outros, e esperançados em que se voltasse a parlamentar, fizemos saber ao rei o que se preparava. Porém, o duque de Flandres e o conde de Aerschot, dando-se conta do motim, armam-se também e a custo travam o levantamento dos seus.

Apaziguado o motim, seguidamente, vão ter com o rei para uma conciliação em favor dos seus, declarando que estavam completamente fora do acontecido. Garantida que foi por parte deles a sua segurança, o rei, uma vez serenado o ânimo, manda que os seus deponham as armas, assegurando firmemente que deixaria para o dia seguinte o cerco, mas não posporia a sua dignidade à tomada da cidade; antes, pelo contrário, dizia, tudo consideraria de menos se ficasse sem ela; no entanto, que se sentia atingido por aquelas injúrias, e nada mais queria em comum com homens corruptos, sem contenção, e dispostos a

Confirmado isto por ambas as partes, anuiu-se ao que no dia anterior os mouros tinham pedido relativamente à rendição da cidade. Decidiu-se, pois, entre nós, que 140 homens de armas dos nossos e 160 dos colonienses e flamengos entrariam antes dos outros na cidade e que ocupariam pacificamente a fortaleza do castelo superior, por forma que os inimigos pudessem trazer os dinheiros e todos os seus haveres, comprovados, sob juramento, perante os nossos; feita assim a recolha, a cidade seria depois inspecionada pelos nossos: se algo mais do que o alegado fosse encontrado com alguém, o dono em cuja casa fosse achado pagaria com a vida. Deste modo, depois de espoliados, todos seriam mandados em paz para fora da cidade.

Aberta a porta e dada autorização de entrarem, os colonienses e os flamengos, concebendo um astucioso ardil, solicitam aos nossos que seja deles a honra de serem os primeiros a entrar. Dada, pois, a anuência para tal efeito e chegada a ocasião, fazem entrada mais de duzentos com os que anteriormente haviam sido designados, fora outros que se tinham intrometido pela brecha da muralha que ficava à sua mercê da parte em que se encontravam, enquanto ninguém dos nossos, que não fosse dos designados, presumira proceder à entrada.

À frente, pois, ia o arcebispo e os outros bispos com a bandeira da Cruz do Senhor e a seguir entram os nossos chefes juntamente com o rei e os que para este efeito tinham sido escolhidos.. O arcebispo e os bispos com o clero e todos os outros, não sem lágrimas de júbilo, cantavam o Te Deum laudamus com o Asperges me e orações de devoção. Entretanto, o rei dá a volta a pé pelas muralhas do castelo cimeiro.

Enquanto decorria a procissão do arcebispo e o passeio do rei, os colonienses e os flamengos, ao lobrigarem na cidade tantas oportunidades de se saciarem não respeitam qualquer observância de juramento ou de palavra dada. Correm por aqui e por ali, saqueiam, arrombam portas, espreitam pelos interiores de qualquer casa, assustam os habitantes e, contra o direito divino e humano, infligem-lhes injúrias, dispersam vasilhames e roupas, atuam sem respeito contra as donzelas, põem no mesmo prato da balança o lícito e o ilícito, às escondidas tudo subtraem, mesmo o que deveria ficar em comum para todos. Ao bispo da cidade, um ancião de muitos anos, cortam-lhe o pescoço, aprisionam o próprio alcaide da cidade, depois de lhe terem tirado tudo de casa.

Os normandos e os ingleses, que tinham em máximo apreço a palavra dada e o respeito divino, observavam onde poderia levar uma atuação destas e permaneciam quietos no lugar que lhes fora determinado, preferindo manter as mãos limpas de qualquer roubo a violarem os princípios de solidariedade firmada por um juramento de fidelidade. A atitude tomada deixou grandemente cobertos de opróbrio o conde de Aerschot e Cristiano com os seus nobres, cuja cupidez ficava à vista de todos, sem equívocos, depois de terem com toda a evidência atirado para trás das costas o seu juramento. No entanto, voltando finalmente a si, com pedidos insistentes, suplicaram junto dos nossos que fossem os nossos, juntamente com os seus, a congregar as restantes partes da cidade para uma partilha pacífica, de tal forma que, depois de aceites as respectivas partilhas, debatessem em paz as injúrias e as subtracções de todos, estando eles dispostos a emendarem o que indevidamente se tinham antecipado a retirar.

Espoliados, pois, os inimigos na cidade, foram vistos sair, sem despegar, pelas três portas, desde o início da manhã de sábado até à quarta-feira subsequente, em tão grande multidão de gente que era como se nela tivesse confluído a Espanha inteira. Relativamente às observâncias da sua religião, logo depois vimos com os olhos o que acima tínhamos referido. No seu templo, que se levanta em sete ordens de colunas com outras tantas abóbadas, foram encontrados uns duzentos cadáveres dos que ali tinham morrido, fora mais oitocentos doentes que aí haviam ficado no meio daquela imundície e na sua fealdade.

Seguidamente, foi eleito para a sede episcopal um dos nossos, Gilberto de Hastings, tendo dado o seu assentimento para a eleição o rei, o arcebispo, os bispos, o clero e todos os leigos. No dia em que se celebrava a Festa de Todos os Santos, em louvor e honra do nome de Cristo e da Sua Santíssima Mãe, foi feita a purificação do templo pelo arcebispo e por mais quatro bispos sufragâneos e restaurada a diocese como sede do episcopado.

Israel e o seu governo não diferem dos cruzados. Os palestinianos são os mouros, expulsos da sua cidade. As negociações entre delegações não devem ter sido muito mais limpas que estas.

Resta a pergunta: o que fazer das pessoas, dos palestinianos, dos homens, mulheres e crianças da Palestina. É que apenas oiço falar de três reféns israelitas. De quanto Israel teve de pagar por eles, depois de ter morto mais de uma centena de milhar de palestinianos, de arrasar Gaza…

Carlos Matos Gomes 

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