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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Das cortinas de fumo como estratégia:

Na atualidade dos últimos meses, há assuntos realmente importantes e os que só têm como razão de ser fazê-los esquecer…  

É possível que o assunto faça objeto de conversas entre profissionais à mesa de café, em cenáculos menos restritos ou até em salas de redação. Nada porém transpira, que se saiba, para fora destes possíveis círculos. Estamos no entanto há meses perante uma situação altamente preocupante em termos políticos como jornalísticos. Quando até é bem conhecido este mecanismo de distorção da informação que procura atenuar ou escamotear factos realmente importantes… 

A teoria é clara: um pseudoacontecimento é criado por um ator ou instância de poder, de modo a atenuar o impacto de uma informação desfavorável (é a primeira hipótese) ou a escamotear o verdadeiro acontecimento com incidências bastante negativas (segunda hipótese). E os exemplos têm abundado em diversos países, nas mais diversas situações. Quando em finais dos anos 1960, os Estados Unidos sofrem um revés no Vietname, o presidente Lyndon B. Johnson apressa-se a improvisar uma conferência de imprensa sobre um assunto totalmente diferente, para levar os média a dirigirem as atenções para este novo assunto. E, em março de 1981, em França, o presidente Valéry Giscard d’Estaing recorre a uma estratégia similar convidando 14 diretores de diários de província no mesmo dia em que François Mitterrand, então primeiro secretário do Partido Socialista, é o convidado de um célebre magazine televisivo de informação, procurando assim neutralizar o impacto da emissão numa imprensa que daria mais importância à própria entrevista com o presidente.

A obsessão dos média pelos factos mais recentes e sensacionais leva-os a adotar de certo modo a chamada lei de Gresham, o financeiro fundador da Bolsa de Londres, que dizia no século XVI: “a má moeda tende a expulsar do mercado a boa moeda”. Adaptando-a às especificidades da informação: os novos acontecimentos afastam os antigos e a má informação afasta a boa. O que quer dizer que a melhor maneira de fazer esquecer um ataque ou uma acusação é lançar um contra-ataque, criando um novo acontecimento. Pelo que o interessado (ou a sua “entourage”) tomará a iniciativa de “fugas” de “exclusividades”. Umberto Eco chama a isto “o efeito bomba” evocando a “démarche” do então primeiro-ministro Silvio Berlusconi: se sei que dentro de dias vai rebentar uma revelação que terá efeitos negativos na minha imagem de marca, resta-me fazer rebentar uma bomba numa estação, num banco ou à saída de uma missa. Ficarei assim certo de que, durante pelo menos quinze dias, os jornais (escritos, sonoros ou vídeo) abrirão sobre este assunto, enquanto o que desagradavelmente me diz respeito será apenas evocado numa página ou sequência no interior, ou mesmo em fim de jornal, as pessoas não se apercebendo sequer dele.

Mestre há meio século na criação de “factos” de manobra e intriga a que imprensa, rádio e televisão dão uma importância constante que lhe permite chegar à Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa passa a instrumentalizar os média como nenhum outro chefe de Estado, no resto da Europa democrática, ousa sequer tentar fazer. E quando se torna por demais evidente, com a história das gémeas brasileiras e a dissolução da Assembleia da República, sobretudo nestes dois casos, que decididamente ultrapassa os mais elementares limites da ética e do respeito pelas competências que a Constituição lhe atribui, começa a provocar “fugas” que têm certamente como origem ele próprio ou a sua “entourage”, de modo a criar cortinas de fumo que impeçam ver o essencial.

Temos assim direito, longos meses depois, à condecoração de António Spínola, à rutura com o filho, a declarações imbuídas de racismo sobre o atual e o precedente primeiros-ministros, a inesperadas propostas de reparações coloniais e a todas as demais que têm unicamente como objeto fazer esquecer o que é realmente importante: a intervenção direta ou indireta no episódio das gémeas brasileiras (de que procura ilibar-se, responsabilizando uma pessoa após outra e impedindo a justiça de investigar sobre o assunto) e a dissolução irresponsável do parlamento (sem tomar em consideração as opiniões do Conselho de Estado) com as consequências facilmente previsíveis que lançaram o país num situação de provável ingovernabilidade.

Em nome dos mais sólidos princípios do jornalismo, os média não podem continuar a deixar-se instrumentalizar por quem lhes propõe diariamente abundância de assuntos. O que lhes permite encher facilmente os jornais, sejam embora tais assuntos quantas vezes meras “mises em scène” do próprio ego, sem incidências na vida dos portugueses. Dispensando os jornalistas de irem para o terreno no país real “do interior”, o que suporia, é certo, esforço e custos. Mas a defesa do Estado de direito e da Democracia merecem bem o indispensável sentido crítico e a desejável tomada de distância por parte de quem tem por razão primeira informar os cidadãos e exercer a salutar função de contrapoder…

J.-M. Nobre-Correia

 

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