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terça-feira, 14 de maio de 2024

A batalha pela verdade factual:

Quando em 1968 as forças do Vietname do Norte e da guerrilha Vietcongue iniciaram a sua poderosa Ofensiva do Tet, contra as tropas de Saigão e dos EUA, tinha eu acabado de completar 10 anos.

Lembro-me, vivamente, de como, apesar da censura, o trabalho dos repórteres ocidentais revelava cruamente, em imagens ainda hoje icónicas (como a da execução, à queima-roupa, de um prisioneiro comunista), a brutalidade da guerra. Nos lares de meio mundo, era possível ver as baixas e o sofrimento dos militares vindos das grandes cidades e do recôndito rural dos EUA. Nessa altura, a expressão “quarto poder” não era um exagero retórico, como o Caso Watergate o voltaria a provar em 1972. Contudo, os poderes que contam - o dinheiro e o seu braço político - aprenderam a prevenir, com mais ou menos sofisticação, essa liberdade capaz de manifestar a exuberância nua dos factos.

Sem o poder da imprensa livre, a Guerra do Vietname teria continuado e Nixon completaria tranquilamente o seu mandato.

Pouco antes da Ofensiva do Tet, a filósofa Hannah Arendt publicou na revista New Yorker um presciente ensaio intitulado Verdade e Política. Arendt salienta que o poder político tem uma incompatibilidade radical com a mais elementar manifestação da verdade, aquela que se limita a relatar e situar os acontecimentos nas coordenadas do espaço e do tempo: a verdade factual. A filósofa identifica até um conjunto de profissões e papéis sociais cuja essência consiste em testemunhar e defender a objetividade factual, correndo os seus praticantes o risco de ficarem sozinhos, ocupando “um ponto de vista fora do campo político”. O filósofo, o cientista, o artista, o historiador imparcial, o juiz, a testemunha e o repórter são, para ela, protagonistas de diferentes formas de dizer e defender a verdade factual.

Os factos suscitam opiniões e interpretações, mas não se confundem com elas. O conteúdo absoluto e único dos factos, é, contudo, muito frágil. Depende de validação, como ocorre nas testemunhas oculares de um crime chamadas a tribunal. Um exemplo: podem existir várias e contraditórias interpretações sobre as causas da I Guerra Mundial, mas nenhum revisionismo histórico pode anular a verdade factual absoluta de que a 4 de agosto de 1914, foi a Alemanha que invadiu a Bélgica e não o contrário.

A verdade factual está hoje em perigo por toda a parte. As democracias liberais, em recuo, cada vez mais subordinadas a interesses financeiros globais, não escapam à vontade de selecionar apenas os “factos” que satisfaçam as interpretações convenientes. A precariedade crescente da comunicação social torna-a mais vulnerável e menos independente. O assassinato deliberado de jornalistas em Gaza, pelo Exército israelita, mostra como até democracias podem ultrapassar a rudeza das autocracias.

Em contracorrente, o jornalista Bruno Amaral de Carvalho publicou um livro singular: A Guerra a Leste. 8 Meses no Donbass, Caminho. Ele ousou mostrar as vozes e os rostos, as vítimas, as pessoas de carne e osso, do outro lado da Guerra da Ucrânia. Começou a conhecer o Donbass, em 2018, quando o ataque do Governo de Kiev à sua população a leste, silenciado no Ocidente, provocava a fuga de refugiados para a Rússia. A invasão de 2022 tem atrás de si uma série causal que só os factos ajudam a compreender. São um sinal de esperança, os verdadeiros repórteres que preferem arriscar testemunhar os factos, recusando serem meros repetidores de interpretações prontas a usar.

Viriato Soromenho Marqies

OPINIÃO

11 maio 2024 às 00:00
A verdade factual está hoje em perigo por toda a parte. As democracias liberais, em recuo, cada vez mais subordinadas a interesses financeiros globais, não escapam à vontade de selecionar apenas os “factos” que satisfaçam as interpretações convenientes. A precariedade crescente da comunicação social torna-a mais vulnerável e menos independente. O assassinato deliberado de jornalistas em Gaza, pelo Exército israelita, mostra como até democracias podem ultrapassar a rudeza das autocracias.

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