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domingo, 12 de julho de 2020

"SEBASTIANAS" - CAPÍTULO III:

...DE NOVO FESTAS DO MÁRTIR OU SEBASTIANAS




Já com o carismático Bispo D. António Ferreira Gomes, pensador ilustrado, no "governo" da Diocese do Porto, as Festas ressurgiram em 1954, de novo com a denominação "Festas do Mártir" ou "Sebastianas", pela acção do dinâmico empresário de panificação, Anselmo Ferreira Marques, acolitado pelos restantes membros da Comissão Executiva, pessoas de todos os estratos sociais: Hermínio Pinto Gomes da Silva, Joaquim Fernando de Sousa Ribeiro, João Manuel Monteiro Correia e Abílio Orlando Matos e Barros.

Anselmo Marques
Estavam, assim, ultrapassados os obstáculos que sempre consomem as energias de quem organiza as Festas, muito por obra, graça e perseverança destes entusiastas.
O testemunho foi passado a outros freamundenses, tantos outros, que ao longo de todo este tempo têm mantido a tradição com dignidade, fervor e bairrismo.
Aquela gente, que reunia no salão da Associação de Socorros Mútuos Freamundense, onde tudo (re)começou, estava escudada numa denominada Comissão de Honra, liderada pelo Dr. António Chaves - a "elite" desviou-se para aqui -, que teria, em situações de défice, a obrigatoriedade de cobrir os valores em causa. Creio que nunca foi necessário.
Organizou-se um programa a condizer e deu-se início ao peditório, apurando-se a quantia de 17 notas de mil. O custo total das festividades rondou os 33 contos.


Carrinhos de choque   Foto: Feira popular (Lisboa)

Surgiram, então, as primeiras "novidades": um "mundo" de diversões que emprestavam um colorido e excitação a todos os romeiros, desde o pequenote ao mais idoso: Carrinhos de choque; Carrossel; Pista de aviões; Cestinhas; Poço da morte; Ratinho da sorte; Matraquilhos; Barraquinhas de tiro..., quase tudo montado no largo adjacente à capela de Santo António.


Poço da morte - Foto: Jornal Ilustrado

Programas de variedades, a alegria do povo em amena convivência festiva, quase sempre com a participação de Ranchos folclóricos (ponto alto de vista cultural e da aproximação dos povos), alguns da "casa", ensaiados por gente com alma de artista; de freguesias circunvizinhas... de norte a sul do país... do estrangeiro.


"Rusga" do "Outeiro"   Foto: Arquivo pessoal de Nelson Lopes

Visitaram-nos durante anos a fio os agrupamentos mais conceituados no panorama etnográfico.
O Cortejo Alegórico e Luminoso, agora Marcha Alegórica, fazia-se anunciar por poderosos morteiros e pelas ensurdecedoras zabumbadas dos Zés P'reiras, acompanhados pela alegria, pelas danças, dos inúmeros gigantones e cabeçudos, ainda sem a participação dos grupos de samba com as «"abrasileiradas" meninas deliciosamente descascadas para deleite dos "apreciadores"», assim mesmo, como Fernando Santos ironicamente transcreveu numa das muitas crónicas enviadas para a "Gazeta".


Membro de um grupo de samba   Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto

A Segunda-Feira foi o dia escolhido para o culminar, em apoteose, das Festas, que duravam desde Sábado.
Os carros, que desfilavam na marcha, eram patrocinados  pelas principais fábricas da Vila (Fábrica Grande, Fábrica do Calvário, Telme, Pinto de Moura, L. Menezes...), e tinham a orientação, até finais da década de cinquenta, de Leopoldo Pontes Saraiva, numa manifestação desinteressada de gosto e arte que tanto engrandeciam esta Terra. Leopoldo Pontes Saraiva, freamundense por adopção,  porque era natural de Vila do Conde, e para cá viera em meados da década de dez (ainda bem!), cá casara com Lucinda de Oliveira e cá seria sepultado.


Carro "O Adamastor" - 1956  Fonte: Diário do Norte

Tempos difíceis, pois a azáfama era grande e o ritmo não abrandava um minuto que fosse, do pôr do sol à meia noite. Por dificuldades no empréstimo dos atrelados, havia só um mês para a confecção dos carros. Os mesmos, já com mais gente a supervisionar, eram feitos, recuperados e reconvertidos na rua, em barracões abandonados, em quintais, onde quer que fosse. Ao relento, ao frio, à chuva... A paixão, o amor, o orgulho em ser-se freamundense, tudo suplantava.
A concentração, organização e saída da "marcha" fazia-se quase sempre da "Quinta do Pinheiro". Uma ou outra vez da "Fábrica Grande". Actualmente, e desde há muitos anos, da "Gandarela".
A Banda da Terra fechava o Cortejo, ainda não muito extenso - quatro ou cinco carros -, de permeio com o colorido e a animação das Associações Etnográficas e das "cegadas" do jocoso grupo de Figueiró; momentos deliciosos proporcionados pelo espírito de Luís Monteiro.


Cegada "Os Pretos", pelo grupo de Figueiró  Foto: Arquivo pessoal de Nelson Lopes

No pós 25 de Abril de 1974, sobretudo, no recinto da Praça do Mercado, que saudades!..., vedado a serapilheira porque as entradas eram pagas (o Bar da Cantina, onde nos deliciávamos com a sardinha assada, o caldo verde e a tijelinha de verde tinto, já era explorado pelos festeiros), surgiram os grandes concertos musicais, principalmente no Domingo de Páscoa, forma encontrada para angariação de fundos.


Praça - "Bar da Cantina"   Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto

Recinto sempre prenhe de multidões eufóricas e entusiastas nos aplausos aos nomes mais sonantes do panorama artístico português.
Nos últimos anos, até Bandas estrangeiras se mostraram nas Sebastianas.


Pedro Barroso

Os "tempos" são outros, realidade incontornável, e hoje há mais sumptuosidade nas sedutoras e, por vezes, exóticas realizações, vividas com uma intensidade fora do comum; o multicolor fogo de artifício e piro-musical - que veio introduzir uma importante qualificação às festas - ; a Procissão, deslumbrante, com os andores "ricamente" ornamentados (um sonho, que arrasta um mar de gente pelas principais artérias urbanas), passando pela "Marcha", referência do cartaz, cheia de encanto e beleza, que enche as ruas de forasteiros, constituída por vários carros alegóricos, todos eles imaginados e construídos por jovens desta terra; mais dias de folia - a Sexta-Feira está a ganhar "pontos", a pegar de estaca, na sua dimensão profana, com a já tradicional "Noite de Bombos" onde centenas de zabumbeiro(a)s, completamente contagiado(a)s, mergulham a cidade com as suas batidas ensurdecedoras e por vezes, muitas vezes, descontroladas, até ao nascer do dia; eventos de cariz cultural e recreativo, onde se têm aliado Associações e Colectividades locais, uma forma de afirmação, envolvimento e dinâmica das nossas gentes, sobressaindo o "Concurso de Quadras"; mais dinheiro...
O orçamento foi de tal forma inflacionado que actualmente 400.000,00€ já não chegam, obrigando as comissões, que trabalham afincadamente doze meses a fio na preparação dos "grandes dias", a trabalhos redobrados, sem desfalecimentos, para que as "Sebastianas", festas de bairrismo e de cultura, mola aglutinadora da vontade e da paixão dos freamundenses, sua linguagem comum, não se apaguem na poeira do esquecimento.



Procissão   Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto


Marcha - Carro Alegórico  Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto  



Fogo de Artifício  Foto: Fonte (?)


As mulheres, mais de 300,  pegaram na "marreta" e mostraram como se faz

Concerto das Bandas - Apoteose final   "Oh Freamunde/Oh Festas Sebastianas...
Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto

Iluminação  Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto


Esquecê-las? Como, se elas vivem em ansiedade premente na retina dos que já tiveram a felicidade de as gozar!? Impossível, teimosamente impossível - assim exaltava o saudoso professor Gil Aires.
Ou então, o Dr. João Neto:
Por Ti lutamos
Por Ti trabalhamos
Só p'ra Te elevar
Durante anos e anos muito delas se escreveu, em prosa e em verso, pela pena de gente sabida e bairrista.
Respiguemos:
1954 - (...) Este Povo de Freamunde tem uma singularidade no seu modo de querer, que o leva a ser invejado e admirado ao mesmo tempo. Uma simples discussão ateia uma labareda de bairrismo que contagia, num ápice, uma massa estruturalmente galvanizada, una, sólida, simplesmente admirável.
Ninguém duvidará que as Sebastianas terão o seu lugar à parte, correndo parelhas no seio das melhores do Norte do País.
1957 - (...) É que estas festas que Freamunde generosamente te oferece, são produto de um trabalho insano, profícuo, árduo, inteiramente seu.
Vem. Cá te esperamos. Lembra-te da velha sabedoria das Nações: Pela alegria se conhece o povo!
Vem conhecer a alegria de Freamunde, para poderes penetrar na sua alma!...
1965 - (...) Vês este esforço ingente, este atrevimento de uma terra que a nada se furta para que haja "Festa" e que tudo faz para que ela te agrade? Tradição!...
Anda daí, pois, forasteiro amigo! Vem folgar, rir, praguejar, beber, cantar, esquecer porque a festa és tu e, sem ti, não pode haver tradição!...
1993 - (...) Mas a ti, Freamundense, que queres que digamos? A ti, que conheces o melhor lugar para ver a marcha; que sabes que há "caldo verde" na Praça; que o "fogo" é lançado da "Jóia" e que se vê e aplaude nas famosas escadinhas; que dás duas corridas atrás das "vacas de fogo" e, pela manhãzinha, pegas num balde e entras no "mel".
A ti, Freamundense, cumpre saber receber porque tu, como nós, és Freamunde. O teu coração bate com o nosso, em uníssono, num ritmo infernal para pulsar este sangue que nos corre nas veias... forte... puro... azul... Muito azul!

2002
Já foi do Mártir, outrora.
Festa da Vila, eu sei lá.
Sebastianas, agora...
Sempre a melhor, amanhã.

2004
O povo vai descansar.
E ainda mal se deitou,
Ouve a "alvorada" a lembrar
Que a festa não acabou.

Mas... há transformações que exigem reflexão. O cariz popular tende a esvair-se, não está de acordo com a tradição. O folclore quase já se foi. Apenas o "vemos" no Cortejo, a cantar "Oh Freamunde/Oh Festas Sebastianas/Para quem vos vê/Vós sois um espelho...". 
As "Sebastianas" têm outra cara, quase que direccionadas para a juventude que garante multidões. Os concertos de palco, as pistas de dança... Isso sim. Isso é que traz gente a Freamunde. 


Concerto de Ana Moura

Para o povo "antiquado" serve-se a missa solene, a procissão e as "pranchadas" das Filarmónicas.
Na evolução irreversível dos tempos, mudaram alguns hábitos: a cerveja e a caipirinha sucederam à laranjada e à "pinga"; as bifanas, o pão com chouriço e o porco no espeto condenaram à extinção o caldo verde e a sardinha assada. Restam as farturas, as pipocas, o algodão doce... Laivos de nostalgia.
Gastronomia regional!? Nada como dantes! Tinha-se de certas casas, as saudosas tasquinhas, de salas exíguas, sem grandes beneficiações mas agradáveis, de ambiente acolhedor e atendimento cortês (Elvirinhas, Ilídio "Jota", "28", Américo "Caixa", Abílio "da Leocádia", Viana, Arminda "da Couta", Ramiro...), uma óptima ideia que nos ficou de estimáveis repastos durante anos - as célebres rojoadas caseiras, as tripas à moda do Porto, cabrito assado no forno a lenha... Depois lá vinha, da barraca em frente ao Cruzeiro, um saco de deliciosas farturas da Família Oliveira.
A lista de vinhos era a pipa de verde tinto que tingia os beiços.


Café e Adega Popular, de Américo "Caixa"   Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto

Que bom continuarmos, mesmo aceitando e entendendo as "modernices", na "estrada" que sempre trilhamos. A estrada da tradição. Sempre viva... Não a queiramos morta.
É certo, pois, que o "profano", na sua cultura popular, não terá certamente entraves. Prosseguirá sempre com pujança. É o que se tem visto! E, já agora, o "sagrado", como forma religiosa, até onde irá? Será que ainda se festeja o "Mártir" por devoção?



Igreja Matriz de Freamunde  Foto: Arquivo pessoal de Joaquim Pinto

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