O Ministério Público tem o exclusivo da acção penal, mas os seus magistrados não podem fazer comentários públicos sobre processos judiciais. A advocacia, que assume o papel da defesa, pode ir à televisão comentar tudo e um par de botas. O resultado é que o espaço público fica completamente desequilibrado entre aqueles que podem acusar, mas não podem falar, e aqueles que se podem defender falando. É assim que Carlos Alexandre e o MP se transformam em sacos de pancada. E é também assim que surgem as famosas fugas ao segredo de justiça, forma perversa de fazer falar aqueles que não têm cadeira nos telejornais.
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Não é fácil começar a análise deste trecho, tantas e tão variegadas as abordagens que competem entre si na incendiada consciência do leitor, pelo que o melhor será comentar pela ordem frásica. Assim, na primeira, ficamos com a tese de haver uma limitação injusta a penalizar o Ministério Público: com tanto para dizerem sobre fulano, cicrano e beltrano que andaram ou continuam a devassar durante as fases de investigação e inquérito, com tanto para opinarem sobre o rumo deste mundo imundo enquanto não despacham a acusaçãozinha ou acusaçãozona, um poder opressor (socialista, tudo o indica) impõe-lhes a lei da rolha. Na segunda, recebemos o ensinamento de ser a advocacia o exercício da defesa e, concomitantemente, de ser uma libertinagem oralizante que medra em canais de televisão. Na terceira, o primeiro corolário: o Ministério Público devia correr para o espaço público de cada vez que aparecem esses artistas da defesa a falar sozinhos, armados em bons, de modo a que os telespectadores pudessem também assistir ao espectáculo dos procuradores e fizessem de imediato o julgamento sem mais demoras. Temos de castigar essa malandragem que até tem dinheiro para contratar advogados, e que só sabem é atrasar as condenações e os costados na choldra com a mania de que têm este direito e mais aquele. Se fossem santos não precisariam de arranjar quem os defendesse, né? Pois é, Zé. Na quarta frase, o segundo corolário: acudam ao Carlos Alexandre e ao MP, por favor, parem com as conversas no espaço público sem a presença de um magistrado por advogado! E na quinta, o terceiro e mais feérico corolário, o qual encerra o texto com donaire: quando Carlos Alexandre e o MP chegam a casa, altas horas da noite ou primeiras da madrugada, só para trocarem de camisa e voltarem logo a seguir para o combate à corrupção, ligando a TV uns minutinhos apenas enquanto trincam meia torrada, e o que lhes aparece na pantalha são advogados e mais advogados e mais advogados, inevitavelmente os coitados sentem que é demais, que é um nojo, e lá passam pela Cofina para deixar umas papeladas a caminho do trabalho.
O naco citado, portanto, é do melhor. Mas com este autor o melhor é apenas uma fase transitória para um estado ainda melhor, num movimento perpétuo que define o seu especial tipo de meritocracia, aquele onde ele mija para cima de quem o leva no andor. Como aqui:
Não achas que Portugal está num estado em que um juiz como Carlos Alexandre está muito tentado a adoptar um estilo justiceiro? Eu acho que sim. [...] Portugal, ao nível a que chegou, é de facto uma lixeira. [...] A Justiça não anda a ser feita. [...] Tu tens um país que foi brutalmente capturado por interesses. [...] Se tu não olhares para a podridão em que o regime está neste momento, e quando os principais partidos não combatem essa podridão, é evidente que tu abres a porta aos Venturas. [...] Já se viu o que é que lhe aconteceu! Oh... [a Joana Marques Vidal]
Ora, vamos à continha:
– Defesa e promoção dos crimes cometidos por magistrados ao violarem o segredo de justiça.
– Concepção populista e linchadora do poder judicial e respectivo edifício jurídico.
– Redução ao mediatismo dos princípios do Estado de direito democrático.
– Culto messiânico do providencialismo justiceiro.
– Visão caluniadora onde, em Portugal, todas as instituições republicanas e todos os representantes do Soberano são acusados de cumplicidade passiva e/ou activa com o crime e com criminosos.
– Adesão à teoria da conspiração onde se diz que Joana Marques Vidal foi afastada por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa para que acabasse a investigação e prisão dos corruptos.
– Concepção populista e linchadora do poder judicial e respectivo edifício jurídico.
– Redução ao mediatismo dos princípios do Estado de direito democrático.
– Culto messiânico do providencialismo justiceiro.
– Visão caluniadora onde, em Portugal, todas as instituições republicanas e todos os representantes do Soberano são acusados de cumplicidade passiva e/ou activa com o crime e com criminosos.
– Adesão à teoria da conspiração onde se diz que Joana Marques Vidal foi afastada por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa para que acabasse a investigação e prisão dos corruptos.
Que está a faltar? Só um pormenor neste vendaval desumanizante e bronco, o azar de não existir imprensa na Grei. É por isso que não se arranja ninguém para ir a Belém perguntar ao Presidente da República se está finalmente em condições de nos pedir desculpa. Pedir desculpa por ter convidado o aborrecido e pseudo-intelectual Tolentino de Mendonça para o 10 de Junho deste ano quando tinha o famoso jornalista João Miguel Tavares disponível para voltar a entreter os portugueses bons e simples, os únicos genuínos, com a sua pessoa, a sua família, a sua meritocracia portalegrense, e umas duas ou três verdades sobre o próprio Marcelo et alia que só o nosso liberal apaixonado pelo estado de excepção tem coragem de revelar num espaço público com advogados a mais.
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Vasco M. Barreto tratou ontem desta mesma passagem e trouxe um Reinaldo Azevedo que se recomenda entusiasticamente: João Miguel Tavares vs. Reinaldo Azevedo
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