Sinto pena do João;
Pena de quem chama “carácter” à submissão porque sempre foi obediente e irrelevante.
Pena de quem transformou “trabalhar muito” numa medalha, porque admitir cansaço seria admitir que foi usado e descartado para nada.
Pena de quem precisa de regras duras, punição e autoridade porque, sem um chicote por perto, a sua fragilidade fica nua e insuportável.
Este novo mundo da direita populista e neoliberal não nasce da força.
Nasce desse vazio individual.
A disciplina é a anestesia da sua fraqueza. A punição é o calmante. A vingança é o seu prazer secreto.
No João, a obediência é virtude moral — desde que não seja contra si — e, por isso, defende polícia, repressão e castigo com fervor religioso, desde que batam sempre nos de baixo… nos que são diferentes.
Quando o João ataca greves, não é raiva que sinto. Tenho pena.
Porque quem odeia greves não odeia a “preguiça”; odeia ver alguém dizer NÃO onde ele sempre se ajoelhou e aceitou. A greve expõe a sua dor: trabalhar calado nunca foi heroísmo para ele, foi sempre medo e necessidade.
Por isso surgem os vídeos recortados, a estupidez amplificada, o insulto apressado. É a mesquinhez típica de quem precisa de rebaixar o outro que luta para não encarar a sua própria submissão patética.
Quando o João aponta o dedo aos imigrantes, o padrão repete-se. Porque a xenofobia é a máscara da frustração. Quando a vida não dá reconhecimento, procura-se um culpado fácil.
O imigrante vira alvo porque é mais fraco, porque não responde, porque não ataca. A raiva não vem do poder. Vem do pânico de descer mais um degrau de irrelevância.
A raiva é o filtro da sua fraqueza.
O João vive tudo como competição. Quem vê tudo como disputa não sabe quem é fora dela. Precisa de vencedores e perdedores para sentir que existe, que há sentido na sua luta. Precisa de inimigos para existir e ser visto. Precisa da palavra final para sentir que ganhou algo.
Por isso a igualdade ameaça. Por isso os direitos incomodam.
Quando alguém ganha direitos, quem vive dentro dessa hierarquia sente-se humilhado.
O seu lugar — beijando botas aos de cima e pisando gargantas aos de baixo — parece ameaçado. Sem essa hierarquia, sente que não vale nada. E talvez esteja certo.
O João também moraliza o sofrimento. Quem sofreu muito tende a achar que todos têm de sofrer.
Transformou desgaste em “lição de vida” porque admitir que foi demais seria admitir que o sistema o usou. Defender o sistema é a sua autoprotecção emocional: se o mundo for naturalmente injusto, então o seu sacrifício não foi em vão… mesmo que não tenha dado frutos.
O João cola-se aos poderosos. Acredita que, ficando ao lado de quem manda, fica maior por associação. Defende que dar aos ricos “acaba por dar algo aos de baixo” porque precisa desesperadamente de acreditar que está do lado certo — mesmo quando nunca sobrou nada, mesmo quando os estudos dizem o contrário.
É PODER emprestado para tapar a sensação diária de irrelevância sentida todas as manhãs antes de ir trabalhar. É a tentativa de ser rico, intelectual ou maduro por osmose.
O João grita honra, pátria, respeito.
Portugal aos Portugueses.
A raiva explode ainda mais quando o reconhecimento prometido nunca chega.
Se a pessoa é invisível, embrulha o ego a uma bandeira ou a uma pátria abstracta para parecer maior. Muda o perfil para um cavaleiro das cruzadas e finge fazer parte de algo grandioso.
Quanto menor a auto-estima, maior a violência simbólica e maior a necessidade de pertença e identidade.
O filho do João pratica e normaliza a crueldade na escola — não por maldade, mas porque reproduz o mesmo padrão ideológico do pai: esmagar para existir, ridicularizar para subir.
A crueldade torna-se moeda social num mundo onde o vazio não é preenchido. O desprezo raramente nasce da força; nasce da necessidade desesperada de se diferenciar...de ser relevante.
O João tem um amigo com quem fala, mas ele encolhe os ombros e diz que não liga à política.
Mas isso também é política — agressiva, cobarde e confortável.
É deixar que outros lutem, arrisquem e percam enquanto ele se preserva. É submissão vendida como maturidade. É medo disfarçado de moderação. É raiva transformada em indiferença.
Este é o terreno fértil do populismo, discurso curto, raivoso e directo, porque expor o vazio de cada um assusta.
Melhor slogans do que espelhos. Melhor vídeos cortados do que contexto. Melhor atacar os fracos do que encarar a própria pequenez. Melhor filtros no Instagram do que admitir a própria mediocridade. Melhor atacar quem protesta do que reconhecer que a obediência nunca trouxe dignidade.
Quando o João chama “preguiçosos” aos grevistas, quando trata trabalhadores como burros indo buscar vídeos descontextualizados, quando aplaude cortes laborais e pacotes que retiram poder negocial, quando repete a fé infantil de que “se os de cima ganharem, sobra algo para mim” — mesmo quando nunca sobrou — não está a defender economia nenhuma.
Está a defender o sentido simbólico da sua própria vida:
"Lutei para chegar aqui, se isto for facilitado, então o pouco que consegui com tanto esforço passará a valer menos."
É isso que dói, lutar uma vida inteira para conquistar apenas vazio — um vazio que até pode ser coberto de dinheiro, mas nunca preenchido de sentido.
Por isso não tenho ódio. Tenho pena do João.
Pena de vidas cheias de rancor porque nunca foram reconhecidas. Pena de pessoas — pobres, classe média e até ricas — que descarregam a frustração num mundo que prometeu reconhecimento e entregou silêncio.
Pena de quem foge do vazio pisando os de baixo e colando-se sempre aos mais fortes para parecer mais alto.
A força verdadeira não humilha.
A dignidade não se ajoelha.
E uma vida com sentido não se constrói a odiar quem luta para viver melhor.
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