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terça-feira, 7 de maio de 2024

Tarrafal e memória:

O advogado, escritor e político italiano Marco Túlio Cícero escreveu, e cito, que a “História é testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, anunciadora dos tempos antigos”.

Neste contexto e na linha deste importantíssimo pensamento, o advogado e escritor Cícero, nascido a 3 de Janeiro do ano 106 antes de Cristo, tem uma clara visão do que representa a História como “testemunha do passado” e ”luz da verdade”.

Nesta linha de análise, surpreende-me os que em Portugal e noutros lugares do mundo querem contrariar e apagar a “luz da verdade “.

A “luz da verdade”, como escreveu e pensou Cícero, devia ser a bússola para que alguma classe política pudesse olhar para os factos da História não como um processo de vingar os horrores do passado, mas verificar a importância de que esses horrores e tragédias não se repitam no século XXI.

Infelizmente, esta não é a realidade depois de 70 anos da criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há quem queira, intencionalmente, apagar da memória coletiva os factos trágicos da História da Humanidade.

É impossível apagar os “Ais” do Campo de Concentração do Tarrafal, criado pela ditadura salazarista, como jamais se esquecerá a I e a II Guerras Mundiais e inquestionavelmente o que foi a dor da escravatura, a colonização, o apartheid, o Holocausto, a Inquisição em Portugal e tudo o que violou e ainda magoa a revisitar o passado face às manchas sangrentas da condição humana.

Negar evidências da História, e documentadas, é a pretensão de quem não consegue parar um minuto no tempo e admitir que as realidades supracitadas são marcas de lágrimas e de imenso sofrimento humano.

Ao referir isto, instalou-se em alguns setores políticos, e não só da sociedade portuguesa, uma polémica sem sentido e uma evidente negação dos arquivos da História nos domínios da opressão, da tortura e das mais bárbaras violações face à condição de ser-se pessoa.

No caso do terrível Campo de Concentração do Tarrafal, o Estado Novo quis aniquilar física e psicologicamente os opositores políticos africanos e portugueses que lutavam com todas as forças das suas firmes convicções face à ditadura e a uma Guerra Colonial imposta, cujas consequências todos sabemos pelas diferentes realidades históricas. Logo, criticar as declarações do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, face às reparações decorrentes da escravatura e do colonialismo é claramente o não-assumir e encarar com realismo que o futuro, em qualquer domínio da História, só pode ser plural se assumirmos no plano político, e não só, as marcas tristes e repugnantes do que foi a escravatura e a colonização.

Não estou mandatado para defender o Sr. Presidente da República Portuguesa em nenhum domínio. Mas o pensamento livre e o direito de opinião são legítimos para qualquer outra corrente de reflexão que seja contrária ao do Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa.

Por essa razão urge um debate sério, sem dogmas e preconceitos, em relação à escravatura e ao colonialismo. E repito que relembrar e evocar esse lado sombrio da História de Portugal e de outros países que foram igualmente escravocratas e colonizadores não é para vingar os horrores praticados face a quase 12 milhões de mulheres e homens acorrentados em navios e os horrendos atos praticados.

Lembrar em pleno século XXI a factualidade do que aconteceu é uma homenagem justa e que vai ao encontro dos princípios dos Direitos Humanos em toda a plenitude, para que não se repitam, nem se estimule o ódio e a violência no atual domínio contemporâneo da Humanidade.

Existem múltiplas formas de reparar os danos causados a povos que foram sujeitos ao inqualificável comportamento de ditadores, executores e torturadores. No plano do conhecimento, da Educação, da Saúde Pública e do respeito pleno pela identidade cultural de cada povo, é a melhor avenida de reconciliação e pacificação dos espíritos e da imperativa dignidade humana.

Continuar a silenciar o que não deve ser silenciado é ser cúmplice da tragédia e não respeitar o plasmado em convenções internacionais ratificadas para o ordenamento jurídico português e a própria Constituição da República Portuguesa.

Tive e tenho a honra de conhecer homens e também mulheres que sofreram as agruras da brutalidade e da arrogância. E o caminho contemporâneo, num domínio local e global, não pode ser a prática da teoria do esquecimento.

Só uma assumida visão humanista e uma diplomacia inteligente e preventiva conseguirá consolidar em diferentes geografias o mais puro e sólido Estado de Direito democrático.

Evocar o Tarrafal, Aljube, Mansoa, Peniche, Baía dos Tigres e todos os campos de concentração, mental e física, não podem existir no devir dos nossos dias.

OPINIÃO

07 maio 2024 às 00:00

Gabriel Baguet Jr 

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