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quarta-feira, 8 de maio de 2024

No Porto:

Este fim-de-semana, imigrantes foram atacados e agredidos em casa. A brutalidade dos relatos é assustadora. Do que se sabe, todos os suspeitos são portugueses e a motivação dos crimes é racial. Por favor, não digam que isto é surpreendente. É simplesmente uma consequência natural e previsível da banalização do discurso xenófobo e racista.

Disse banalização, mas aquilo a que estamos a assistir é a uma verdadeira institucionalização da xenofobia e do racismo. É proibido, é crime, é fundamento para extinguir um partido político. Só que nada disso é relevante. Fazemos letra morta da lei. Na prática, temos um partido racista a ocupar boa parte da Assembleia da República e cada vez mais portugueses a vocalizarem preconceitos raciais, na verdade, ódio racial. A democracia também é isto. É tão aberta e tolerante que acolhe mesmo aqueles que a querem destruir.
Os eleitores do Chega, e estou consciente de que estou a falar de mais de um milhão de portugueses, sabem o que ali está. Sabem do incitamento à discriminação. Sabem também que estão a votar no regresso à supremacia patriarcal branca. Não há aqui inocentes. É o nosso lado conciliador e otimista que insiste em chamar voto de protesto a um voto que necessariamente é também ideológico.
O problema é que se não acertarmos nas causas jamais acertaremos na cura. Temos um problema de racismo em Portugal e ignorar que ele existe não vai fazê-lo desaparecer. Existe uma tradição portuguesa de ignorar o racismo. Foi, desde logo, a grande falha do pós-25 de Abril. Por alguma razão a minha geração foi instruída por livros que faziam o elogio da grande aventura dos Descobrimentos e que se abstinham de fazer uma análise crítica do colonialismo. Ensinaram-nos que levámos a civilização a outros povos, que foi tudo maravilhoso e que o heroísmo faz parte integrante do nosso ADN.
Essa ausência de crítica ao colonialismo também nos dispensou de fazermos uma autoavaliação relativamente ao racismo. Falava-se dos angolanos, guineenses, moçambicanos, e de todos os que eram naturais das ex-colónias como se fossem inferiores. Eram os criados que serviam nas propriedades dos portugueses colonizadores. Não tinham direitos. Eram descritos como pouco inteligentes. Estou a falar de um passado recente de que todos deveriam sentir vergonha.
Mas se há coisa que muitos portugueses perderam recentemente foi a vergonha. Este fim-de-semana vi mais pessoas a justificar e a defender as agressões a imigrantes no Porto do que a repudiá-las. Tenho a certeza de que essa amostra não representa a maioria dos portugueses. Só que tenho igualmente a certeza de que essas pessoas estão cada vez mais ativas no espaço público. Fazem-se notar e fazem-se ouvir. Afirmam com orgulho aquilo que antes silenciavam.
Os portugueses racistas recusam-se a acreditar que os ataques no Porto tiveram motivação racial. É de facto uma coisa que não lhes entra na cabeça, uma possibilidade que não aceitam. E isto acontece sempre com o racismo: aqueles que negam que ele existe estruturalmente em Portugal são precisamente os mesmos que o têm estruturalmente dentro de si.
Não é o único equívoco onde lavram. Afirmam que existe uma relação entre imigração e criminalidade, contrariando os dados disponíveis. A partir daí, afirmam também que sentem insegurança. Mas é cada vez mais evidente que as únicas pessoas que têm razões objetivas para sentir insegurança em Portugal são os imigrantes. Por outro lado, acreditam que os imigrantes são uma ameaça para o país e sentem-se dispostos a defendê-lo dessa ameaça. Claro que é também evidente que a única ameaça são eles próprios: põem em causa a paz social e pretendem um regresso a um Portugal sombrio. O que reconhecem como sendo a grandeza de Portugal é a negação da nossa maior grandeza – sermos abertos, tolerantes e não termos medo dos que são diferentes de nós.
Todos os partidos políticos condenaram os ataques. Claro que a condenação do Chega foi feita sem qualquer assunção de responsabilidades e em termos que desculpabilizam os que cometeram aqueles crimes E houve também a condenação de Luís Montenegro. Mas não podemos esquecer que, na campanha eleitoral da AD, Pedro Passos Coelho também estabeleceu uma relação entre insegurança e imigração. Não vi Luís Montenegro distanciar-se dessas declarações. Fazer de conta que o discurso político não tem consequências é inaceitável e está a correr muito mal.
(Carmo Afonso, no "Público")

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