O texto de Monika Zgustova no El País é para mim um excelente ponto de partida para entrar no pensamento de uma elite eslava e germânica sobre a Europa e que ajuda a analisar a racionalidade ou a irracionalidade das decisões dos governos europeus nesta guerra da Ucrânia. Kundera é, como todos nós, ele e as circunstâncias. Ele é checo saíra do seu país por discordâncias políticas, na sequência da invasão da URSS. No artigo de 1983 ele polariza duas Europas, das duas capitais do cristianismo, Roma e Constantinopla. Haveria assim duas Europas, Moscovo e Paris (onde ele se exilou e Roma deixou de contar após a queda do império romano) e a tragédia europeia resultaria desta divisão e do facto de os habitantes do Oeste da Europa , a Europa Central (Polónia, Checoslováquia, Hungria) se terem visto de um dia para o outro surpreendidos por serem do Leste. E ainda que um sinal da identidade da Europa central seriam as revoltas que estes países organizarão contra os soviéticos na segunda metade do século XX: a revolta húngara de 1956, a Primavera de Praga de 1968 e as sublevações polacas que se sucediam uma ou mais vezes em cada década. Segundo Kundera terá sido o império russo que fez a Europa Central perdesse a sua identidade como território marcado pela tradição multicultural do Imperio Austro-húngaro. Kundera entendia que este Império foi uma grande oportunidade para criar um Estado forte no centro da Europa e que os austríacos estavam divididos entre seguir “o arrogante nacionalismo da grande Alemanha” e a sua própria missão centro-europeia; por isso não conseguiram construir um Estado federal de nações iguais. “O seu fracasso foi um fracasso para a Europa”. O Imperio Austro-húngaro dividiu-se em muitos pequenos países cuja fragilidade permitiu que primeiro Hitler e depois Estaline os subjugassem.
O “Ocidente sequestrado” adquiriu uma atualidade e uma importância relevante agora, com guerra na Ucrânia, isto porque através deste ensaio podemos ler o guião da guerra e do comportamento dos estados da “Europa Central” e que são esses, estão a ser esses que o impuseram à Europa Ocidental. Eles partilham o guião de Kundera com os Estados Unidos e com a Inglaterra, a sua agente europeia.
Este guião contém várias falácias, como é habitual em todas as narrativas de justificação de uma guerra. A divisão da Europa entre romanos e bizantinos é tão verdadeira como entre católicos e protestantes, entre latinos e germânicos, entre estes e os eslavos, entre estes e os nórdicos. A ideia de os conflitos serem entre povos é também de fraca sustentabilidade, mas é muito apelativa. Os conflitos surgem dos interesses dos Estados e das elites que os dirigem em nome dos seus interesses. As guerras travam-se entre Estados e por interesses e esta é, curiosamente, a definição de Clausewitz, um militar e um pensador do império prussiano. A “estupefação” que Kundera refere de os europeus centrais se verem transferidos para o Leste não se deve à religião, nem a questões étnicas mas sim ao papel que os estados centrais desempenharam na II Guerra Mundial e da partilha do mundo e da Europa que daí resultou. A passagem para Leste dos europeus do Centro, deve-se aos alemães e a Hitler o seu chefe democraticamente eleito. Para a tese de Kundera (no rescaldo da revolta de Praga) e dos atuais poderes dominantes na Europa conviria que tivesse sido a Rússia e Estaline, mas não foram e Estaline nunca lhes impôs nem o rito ortodoxo nem os carateres cirílicos. A realidade é o que é, não o que nos conviria num dado momento que fosse.
O argumento de Kundera de que a ideia de um império central na Europa horrorizava a Rússia é a dos países que estão atualmente a impor a sua leitura da situação. Mas a proposta que eles fazem e que têm estado a impor como verdade (até com a ameaça de que quem não a aceitar passa a ser punido como agente secreto de Putin), com o forte apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra, é a substituir um império — o russo — por outro império sucedâneo do austro-húngaro, o mesmo que provocou duas guerras mundiais e que, ao contrário do russo, se estendeu sempre para Leste tentando chegar a Moscovo e destruir o império russo. Acresce que, seguindo o raciocínio de Kundera de sequestro da Europa central pela Rússia, e aceitando como boa a sua tese da divisão da Europa entre cristãos e ortodoxos, entre o alfabeto romano e o cirílico, a Rússia falhou na tarefa de impor a sua igreja e o seu alfabeto. Isto é, não foi a Rússia que destruiu o império central, foram os estados desse império que se destruíram em duas guerras mundiais, não foi o estalinismo a destruir a Europa, foi o nazismo! Pode não ser uma afirmação conveniente, mas é a realidade.
O «Ocidente Sequestrado» escrito por um dissidente checo, no período da revolta de Praga, atribuía, como hoje faz Zelenski, todos os males à Rússia e utilizava argumentos do tipo dos bonés de basebol — one size fits all — serve a todos e para tudo, mas essas interpretações, legítimas por parte de quem se sente agredido, devem ser contextualizadas à luz do tempo e dos interesses que os seus autores pretendem obter. Era esta contextualização de interesses e discursos que os políticos de outras Europas deviam fazer, em vez de saltarem à ordem do corista das festas de despedidas de solteiro e de fim de curso, entre bebedeiras, de que quem não salta é «putinista», como na recente cimeira de Bruxelas.
Os interesses dos Estados centrais (e não ortodoxos) de que falava Kundera em 1983 não são os mesmos da atual Europa do Mediterrâneo, nem da Europa do Norte, nem da Península Ibérica, nem, julgo da Alemanha. E aquilo a que estamos a assistir é à imposição da narrativa dos Estados da Europa central, dos adeptos de um império central europeu que una os pequenos e médios estados do centro da Europa, os tais que provocaram duas guerras e que criaram o nazismo e se preparam para uma terceira versão da tragédia, em detrimento dos Estados da Europa Ocidental.
À luz desta leitura, que a reedição do ensaio de Kundera nos ilumina, percebe-se (ou não) as dificuldades de se situar da Alemanha, dividida entre belicistas dispostos a dar gás e armas a um império central para colaborar na invasão da Rússia, de alemães aliados agora aos Estados Unidos e à Inglaterra (uma aliança nunca ensaiada), e os europeístas que estão em perda e nada podem fazer depois de os Estados Unidos lhes terem cortado a energia barata, imposto o desarmamento e exigirem-lhe o pagamento das despesas de guerra na Ucrânia. E também se percebe mal a posição da França, que na Segunda Guerra teve o desprazer de uma visita de Hitler a Paris e está a aceitar agora as condições para lhe aparecer um sucedâneo atualizado. Zelenski não é Imre Nagy, executado em 1958 pela URSS pelo seu papel na revolta de 1956, nem Alexander Dubcec o primeiro-ministro checoeslováquio da Primavera de Praga (1968), é apenas um factótum bem pago e bem apoiado.
Por fim, é triste verificar a mediocridade da comunicação social portuguesa, que passa ao lado de tudo o que seja pensar e o ensaio de Kundera de 1983, agora reeditado e comentado faz pensar porque apresenta os pontos de vista de outros, não por acaso, os que estão a impor os seus interesses com os argumentos que lhes convém.
Carlos Matos Gomes
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