Uma forma de desvalorizar os crimes denunciados pela Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa consiste em relativizá-los na comparação com os números de crimes similares ocorridos fora da ICP, sejam estes conhecidos ou imaginados. Gente muito graúda começou tal campanha logo quando se apresentaram resultados provisórios da investigação, e será essa a retórica que mais irá sendo martelada pelo organismo ferido. Faz sentido tentar conter os danos pelo nivelamento antropológico, pois reflete uma verdade: a ICP não tem o exclusivo dos abusos sexuais em crianças e menores, nem os inventou. É a humanidade, pá.
Num outro nível, que apenas ocupa colunas de opinião esparsas, questiona-se a cultura de uma organização vocacionada para o encobrimento destes crimes, quiçá de muitos outros. Nesse âmbito, cabe a responsabilidade individual adentro da hierarquia, culminando nos papas. Fica a pairar a contradição, se não for o paradoxo, de se estar a pretender condenar o sujeito activo dos crimes sem fazer o mesmo a quem o selecionou, formou, habilitou para ter poder de influência e coerção sobre as vítimas e, após tomar conhecimento da sua violência e respectivos danos, decidiu encobrir e proteger o criminoso — enquanto abandonava as vítimas ou, o mais frequente, ainda as castigava. É uma problemática fascinante porque remete para uma única saída: a refundação da Igreja Católica Romana.
Mas há uma dimensão ainda mais intrigante, a qual é estritamente espiritual. Admitindo que os fiéis católicos têm fé, vamos apostar 10 euros nisso, que estão eles agora a pensar do seu deus, um deus que nem sequer consegue proteger os espaços — e respectivas cerimónias — onde o culto público que o povo presta a “Deus” se torna acontecimento “misterioso” através da real ingestão do “corpo de Cristo”? Que tipo de relação se deve ter com um deus que deixa os seus mais purificados representantes cometer o que só podem ser actos diabólicos de acordo com a doutrina católica, e que por acréscimo permite, quiçá horas ou minutos depois, que esses mesmos fulanos estejam no altar a celebrar a “santíssima eucaristia”? Como é que o fiel católico dá sentido à sua experiência de ter um deus que fica impávido e sereno perante a infernal destruição da saúde mental de crianças e jovens cujos pais confiaram na sacrossanta publicidade? Dá vontade de concordar com os maluquinhos que dizem estar na palavra “Roma”, e no que ela transporta de herança histórica, a literal antítese do “amor”.
Do blogue Aspirina B
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