Para além da verdade, também a democracia está a ser vítima desta guerra. A divergência de pensamento transformou-se em delito de opinião.
Tornou-se banal admitir que a verdade é a primeira vítima da guerra. Na maioria dos casos, é um reconhecimento pouco útil porque não ajuda a aumentar as defesas contra a mentira. Não nos coloca de sobreaviso. Não eleva os níveis de alerta. Isso aplica-se ao processo comunicacional relacionado com o conflito na Ucrânia, que nos envolveu nos últimos meses.
Passado quase um ano de hostilidades, é tempo de confrontarmos os factos com os discursos. Este exercício deve ser feito independentemente de convicções pessoais, ou do apoio que se dê a uma ou à outra fação. O facto de a esmagadora maioria da comunicação social estar do lado da causa ucraniana, por muito justa que seja, não legitima nem justifica a promoção sistemática de propaganda.
Qualquer declaração do Governo ucraniano, assim como de algumas outras fontes, como sejam os serviços secretos ingleses, transformados neste conflito em agência noticiosa, é automaticamente considerada uma verdade absoluta inquestionável, por mais ilógica e inverosímil que seja. Fica isenta de contraditório, averiguação e certificação.
Desvaneceu-se assim a fronteira entre notícia e informação. Tornou-se fútil e dispensável verificar a verosimilhança da notícia, um quesito fundamental para se tornar informação. Escancarou-se a porta à manipulação. Ao aceitarmos e promovermos realidades complexas com representações maniqueístas de santos de um lado, e pecadores do outro, tornamo-nos colaboracionistas e, nalguns casos, agentes da manipulação.
A manipulação informativa turva a cognição e impede que se percecione a realidade com clareza. Inibe a clarividência e impossibilita-nos irremediavelmente de compreender o outro. O raciocínio reduz-se a um corrupio de preconceitos.
No caso em apreço, o lado russo tem sido o alvo. As forças russas não tinham munições (davam apenas para uma semana), não tinham preparação, estavam mal equipados, aprendiam a manusear o armamento pela wikipedia, não tinham botas, os soldados desertavam, o ministro da Defesa foi demitido, o chefe das forças armadas morto, Putin foi atingido por várias doenças terminais, os civis eram o alvo dos bombardeamentos, sem esquecer a atribuição da destruição do Nord Stream à Rússia, etc.
Não faltaram “especialistas” para credibilizar estas “notícias”, na maioria dos casos insultos à nossa sanidade mental, com a finalidade exclusiva de moldar atitudes e comportamentos. Ajudaram a criar nas opiniões públicas ocidentais o dogma da vitória ucraniana, como se tratasse de uma imposição divina.
Afinal, quem não tem munições é Kiev, quem não tem base industrial e tecnológica de defesa capaz de apoiar a guerra é a Europa e a Ucrânia, que sobrevive apenas com recurso à ajuda externa, que fez uma remodelação governamental profunda, lançou brutais campanhas de mobilização, etc.
Para além da verdade, também a democracia está a ser vítima desta guerra. Com a conivência promíscua de largos setores da elite pensante do país, aplaude-se o pensamento único, insulta-se e demoniza-se quem questiona as narrativas do mainstream. A divergência de pensamento transformou-se em delito de opinião.
Independentemente do curso da guerra e do lado para que penda o nosso coração, quando informação e manipulação se misturam num pântano de insalubridade é clara a conclusão: a democracia está moribunda. Não só aqui, mas noutras latitudes também.
Carlos Branco, Major-general e Investigador do IPRI-NOVA
Jornal Económico
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