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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

“Cornos é um palavrão. Isso não se diz!”

Texto completo do que foi lido na emissão de Panfletos que pode ser ouvida aqui: https://tinyurl.com/3nvfzbrk

Estamos em época de semi-finais do Festival RTP da Canção. O que se segue foi uma escolha dos membros do grupo Panfletos, através de uma votação realizada no grupo do programa no Facebook da Antena1 (https://tinyurl.com/wcx8cuas ), para selecionar para tema desta emissão uma das quatro canções com letras de Ary dos Santos que foram vencedoras de festivais da RTP da canção.
O resultado desse inquérito foi este: Menina do Alto da Serra (de 1971), 62 pontos; Portugal no Coração (1977), 81 pontos; Desfolhada Portuguesa (1969), 254 pontos; Tourada (1973), 505 pontos.
Em 1973 eu ainda frequentava a escola primária. Lembro-me bem do raspanete que levei da professora quando cantarolei, ao pé dela, estas duas estrofes:
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.
“Ó Pedro, cornos é um palavrão. Isso não se diz!”, gritou-me a professora e eu, envergonhado, calei-me.
Aquelas duas estrofes tinham, no entanto, muito mais do que se lhe diga do que o mero atrevimento de dizer na televisão, para uma audiência de quatro milhões de telespectadores, a palavra “cornos”em vez de “chifres”, aquela que o Portugal moralista desse tempo considerava aceitável para designar o apêndice que ornamenta alguns mamíferos.
As duas estrofes em causa eram a senha do segredo que “Tourada” guardava.
E do que é que falavam estas duas estrofes? Da esperança de afugentar a fera (a ditadura), de estarmos a chegar a uma verdadeira primavera (não a falhada primavera marcelista - https://tinyurl.com/wsmdae3n), de o povo decidir comandar o seu destino com as suas próprias mãos para fazer “da tristeza” desse tempo um novo tempo de “graça”.
Era uma verdadeira provocação política, infiltrada num festival institucional, e não havia maneira de a censura não aprovar tal texto, pois tudo se baseava num subtexto que ninguém assumia existir.
O resto da letra utiliza o exemplo de uma tourada, o seu cerimonial, as suas tradições, os seus protagonistas, o seu público, para ridicularizar a própria situação do país, os vícios, o provincianismo, o marialvismo, o mau gosto, a inconsequência, a ganância.
No final, o “inteligente” – o nome dado ao diretor de uma tourada, mas que podia ser entendido como uma referência ao ditador – quando estava farto, dava a festa por terminada: acabavam as canções, como diz o verso final.
Este tema de José Carlos Ary dos Santos e de Fernando Tordo venceu o festival de 73 (https://tinyurl.com/y6thxu3c) entre aplausos entusiasmados e alguns protestos no Teatro Maria Matos, numa votação muito renhida com outra canção apresentada e musicada por Paco Bandeira: “É por isso que eu vivo” com letra de... Ary dos Santos.
O Jornal de Notícias, aliás, ironizava com este título: “Foi uma vitória da Lei das probalidades”. Porquê? Porque Ary escrevera seis das letras das 10 canções que foram apuradas para a final, Tordo compusera quatro melodias para quatro das canções de Ary e o próprio Tordo interpretara duas: “Tourada” e “Carta de Longe”.
Outro jornal, o Diário de Notícias, notoriamente situacionista, parecia mesmo irritado com tudo aquilo e titulava, na primeira página do dia 27 de fevereiro, o seguinte: “Uma certa decepção no Festival TV da Canção: “Tourada” interpretada por Fernando Tordo vai ao Luxemburgo e no entanto, de norte a sul do país todos esperavam melhor. Mais palavras do que música, mais gestos do que vozes” – enfim, para as pessoas do regime, tudo aquilo cheirava a vitória dos oposicionistas. E era.
Ary dos Santos, ainda na plateia a saborear o prémio, diria o seguinte a um jornalista do JN: “Alegra-me imenso este facto – ganhou uma canção cuja letra envolve objetivos desmistificadores (...) de uma sociedade, de uma certa sociedade. (...) A letra de Tourada é-lhe dirigida, a esse tipo de sociedade. A Tourada que escrevi nada tem contra o espectáculo”.
E no Diário de Notícias, é atribuída a Ary esta declaração: “Trata-se de um poema satírico e desmistificador que vem ao encontro de determinado tipo de sociedade. E se podemos pegar o mundo pelos chifres da desgraça, é saudável que se faça graça”.
... Eu, com aquela memória da minha professora primária, pergunto-me se o jornalista que reportou esta frase não achou melhor substituir a palavra “cornos” pela mais prudente “chifres”.

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