Golo" foi a senha gritada pelo comunista José Gervásio para pôr em marcha a última fuga coletiva das prisões do Estado Novo. "Eu, por acaso, em miúdo, era apaixonado pela bola. Ainda cheguei a treinar nos juniores do Oriental. Gostava muito de jogar à bola. E essa palavra "golo" - que ali era um sinal - é uma palavra mágica", lembra Domingos Abrantes.
Numa segunda-feira que amanheceu cinzenta e fria, dez presos jogam com uma bola de trapos durante o recreio no pátio interior da cadeia de Caxias, enquanto eram vigiados por quatro guardas. "Claro que é uma palavra mágica quando se chega ao fim. Porque quando o Gervásio diz "Golo" entra-se num processo cheio de incógnitas: Disparam? Não dispara? Atingem-me? Não me atingem? O carro é blindado? Ou não é blindado? Mas isso... depois daqueles 60 segundos, é uma imagem fantástica!", continua o histórico comunista.
Em plena luz do dia, e perante o olhar incrédulo dos carcereiros, oito funcionários do partido comunista abalroaram o portão do forte de Caxias e saíram de carro para a rua. O Mercedes de Salazar tinha atravessado o túnel para o interior do forte de marcha-atrás, e fica, parado, rodeado pelos presos. Sempre com o motor a trabalhar, o carro ocupa quase todo o espaço. Ao sinal combinado, os presos precipitam-se para dentro do carro. Os termómetros marcavam 13ºC e os relógios 09h35.
"O espaço era tão curto que eu sentia nas costas a espingarda
do GNR. Aliás, foi o GNR que me empurrou para o carro. Nós tínhamos que andar a
uma grande velocidade para não haver tempo de reação. Demorámos seis segundos a
entrar no automóvel." No entanto, Domingos Abrantes explica que nem tudo
correu como o planeado: "A minha função era só entrar. Mas nós só tínhamos
visto o carro ao longe. Nunca tínhamos estado perto. Era grande! Tinha cinco
metros de comprimento, cinco mil quilos. O carro era um autêntico tanque! Mas
visto à distância ainda parecia maior e devia ter uma ranhura qualquer que nos
levou a pensar que tinha mais uma porta do que na realidade tinha. Por isso, o
camarada que tinha que abrir a porta não a encontrava. Acabei por ser eu a
abrir uma porta. Foi nessa altura que o GNR me empurrou", conclui.
O histórico dirigente do Partido Comunista explica à TSF que,
"esta fuga só se podia fazer dado o insólito. A primeira reação dos
guardas, sobretudo do que estava junto ao carro, e do outro que estava junto ao
túnel, que tenta parar o carro, faz aquilo com a maior das displicências. Ele,
aliás, estendeu a mão como quem diz: "Para onde é que vocês vão?"".
Quando já estava do lado de fora, o carro foi atingido por 19 tiros. Só nessa altura os fugitivos tiveram uma certeza: o Mercedes preto oferecido por Hitler a Salazar era mesmo blindado. "As rodas estavam protegidas pelo morro que há entre a estrada e a prisão", acrescenta. "O carro ficou muito machucado porque o portão era de madeira chapeada a ferro com uns grampos e tal. Metade do portão ficou intacto, mas a parte da frente, do lado esquerdo do carro, ficou desfeita. O guarda-lamas ia a arrastar pela estrada. As pessoas faziam-nos sinal - como se nós não soubéssemos", conta entre gargalhadas.
Sempre a grande velocidade, os fugitivos seguem em direção a Lisboa. "Metemos à autoestrada, como se fossemos virados a Monsanto. Depois descemos ao Alvito e foi aí que saíram os primeiros. Eu saí a meio da rua Maria Pia e os últimos dois saíram no Arco de Carvalhão."
De volta à liberdade, os oito funcionários do PCP foram à procura de casas seguras. "Por acaso houve sorte: em todas as casas havia gente. Eu fui para casa do Fonseca e Costa. Ele não estava, mas estava a companheira. Era um rés-do-chão alto. Ela estava a tomar o pequeno-almoço quando eu bati à janela, arregalou os olhos de espanto. Mas felizmente estava em casa e foi assim."
Na TSF
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