Bloco de Esquerda não quer a
visita de Jair Bolsonaro a Portugal. Não percebo porquê. Ele não é nosso
Presidente, nem primeiro-ministro, nem presidente de junta de freguesia - aqui
não manda nada. Aqui, ele não pode incitar antigos volframistas nazis à desflorestação
dos bosques transmontanos, nem promover a ida para o Panteão do torcionário
pide Casimiro Monteiro. Então, não o deixar entrar seria desperdiçarmos a
oportunidade de analisar um "ao ponto a que a gente chegou!", mas
distante, sem o risco de lhe sofrer as consequências. Mais, tipos assim são
bons de nos cruzarmos com eles quando, para nós, ainda estão na fase "ao
ponto a que a gente pode vir a chegar!". Bolsonaro, se impotente connosco,
pode ser um bom caso de estudo.
Recapitulando, Bolsonaro, mesmo
só simples administrador de condomínio, seria horrível. Lá no prédio, os seus
olhares desdenhosos sobre o gay do 3.º direito ou a proposta para abrir uma
carreira de tiro na cave seriam insuportáveis. Mas, ó bloquistas, Jair
Bolsonaro não é desses brasileiros que fogem do Brasil porque o temem ou ele os
envergonha. Não, ele não vem para cá ficar. A vir, seria para uma cimeira
luso-brasileira, uns dias, uns discursos e ala! E há mais, nem a cimeira está
acordada nem a vinda do presidente do Brasil está programada. Como o ministro
Santos Silva já disse: "Não consigo cancelar viagens que não estão
programadas."
A precipitação do BE em protestar
por um não acontecido revela muito da prática política portuguesa do esbracejar
em vez do bater. É o popular "agarrem-me senão mato-o!" levado para
os Passos Perdidos. Ora, Jair Bolsonaro não pode ser combatido com faz de
conta. Correr a ser os primeiros a exigir "ele não entra!", quando
isso ainda não é nem se decidiu, pode parecer-se com uma cuidadosa arma
política, a prevenção. Mas nem sempre esta é útil. Prevenidos de Trump e de
Bolsonaro, para citar toscos, andamos há muito, e a lista dos
surpreendentemente inadequados para governar não cessa de crescer. E da lista
ainda não foram citados outros desqualificados, como o norte-coreano Kim
Jong-un e o venezuelano Maduro.
Listas feitas (mesmo só essas, a
curta e a menos curta, sem considerar a quantidade de infrequentáveis
internacionais que há), avançamos um passo para compreender o erro do BE.
Exigir o cancelamento da visita de um líder de um país com o qual se tem
relações diplomáticas parece de rijo, mas é mole de raciocínio. Essa astúcia
que os Estados inventaram - a diplomacia - parte de um princípio prudente:
deixar sempre uma porta aberta. Talleyrand, que sabia da poda, disse: "Um
diplomata que diz sim quer dizer talvez; um diplomata que diz talvez quer dizer
não; e um diplomata que diz não não é um diplomata."
E nós que temos a ver com a tal
diplomacia? Explico: também para nós, gente comum, se precisamos de alguma
coisa de alguém, devemos deixar a essa pessoa um caminho que a conduza até
nós... É a justificação para a tal porta aberta. A um desqualificado líder de
um país remoto podemos talvez remetê-lo para inflexíveis votos na ONU. Mas
quando a tal porta abre para o Brasil... O Brasil democrata não desdenhou o
convite para vir ao Portugal de Salazar - e o presidente Juscelino Kubitschek
acenou, de pé, num carro aberto, aos lisboetas. O Portugal do 25 de Abril nem
um só momento pensou em cortar relações com o Brasil dos generais ditadores,
nos dez anos em que ambos conviveram até a democracia brasileira voltar, em 1985.
Um boçal é hoje presidente eleito
pelos brasileiros. Esta última condição é quanto basta para entrar pela nossa
porta abertíssima ao que tanto, tanto nos interessa - o Brasil. E quanto ao tal
Bolsonaro, sempre nos pode mostrar o préstimo pessoal já lá atrás mencionado.
Venha para aprendermos: "Ao ponto a que a gente pode vir a chegar!"
Ferreira Fernandes no DN
Ferreira Fernandes no DN
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