1. Portugal entrou surtado em 2019. A doença ditatorial é crónica, mas tem fases de hibernação e fases de surto. Estamos numa fase de surto. Invertebrados da TV fazem render a extrema minoria nazi que nos cabe, e a Entidade Reguladora dos media dá uma mãozinha. Quem é esta gente? O que tem na cabeça? TV privada, entidade pública, parceiras no crime.

2. Para quem não acompanhou, resumo. Primeiro, o canal aberto TVI fez uma entrevista-show com um neonazi, condenado há anos por homicídio racista, que agora está a organizar uma manifestação chamada “Salazar faz muita falta”. Depois, capitalizando o show ao máximo, a TVI foi para a rua perguntar ao “povo” se precisamos de um novo Salazar.
Já se gastou muita tinta com o apresentador, Manuel Luís Goucha. Mas o director de informação da TVI chama-se Sérgio Figueiredo, e nos últimos dias desdobrou-se a defender o indefensável. Como isso é impossível, atacou. Atacou o Sindicato de Jornalistas, que questionara a entrevista. Atacou o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, que tivera a coragem — rara, nas suas funções — de denunciar a atitude “incendiária” da TVI. Em suma, Figueiredo não só cobriu o lamentável Goucha, como procurou destruir os críticos da TVI. Nada ideológico, decerto. Apenas aquilo a que os mais antigos chamam vender a alma. Em vernáculo, audiências.


3. Entretanto, o inimputado Goucha continuava a atear o fogo, anunciando que dia 9 — anteontem — teria como convidado esse sub-espécime insuflável que é o brasileiro Alexandre Frota. Celebrizado no porno, nomeadamente gay, Frota notabiliza-se agora por ser homofóbico e querer “acabar com os direitos humanos”. A cara da Nova Era Bolsonaro. Aliás, Frota estava lá, por trás do eleito, no discurso da vitória. Eis que em Portugal chegou dia 9 e nada de Frota no Goucha. Mas a expectativa deve ter dado um bom share.

4. Tento ignorar fascistas sem impacto, para que não o tenham. Mas não há como ignorar um nazi num programa de grande audiência. Este nazi, Mário Machado, liderou skinheads em Portugal, escreveu sobre o prazer de espancar “o inimigo”, de sentir a faca a entrar na carne, e com outros nazis matou um português negro, Alcindo Monteiro, em 1995. Cumpriu pena por isso. Agora está a apelar à tal manif “Salazar faz muita falta”, que Goucha, Figueiredo & Cia acharam tão interessante propagar, apresentando o nazi aos espectadores como “autor de frases polémicas”.
Além da TVI, Machado usou pelo menos Youtube, Twitter e Facebook para o seu apelo. Fui ver esses 4 minutos e 19 segundos, em que se dirige aos “nacionalistas”, em nome do colectivo Nova Ordem Social. Explica ele que a manif acontecerá a 1 de Fevereiro, pelas 19h, “em honra do professor doutor Oliveira Salazar”, porque a memória e nome deste “herói nacional” têm vindo “a ser enxovalhados”. A concentração começará diante da sede do Partido Socialista, “os principais traidores” da nação, e segue em marcha até à Assembleia da República, onde ficará “de costas para o parlamento e de frente para os portugueses”. Porquê de costas? Porque “o maior inimigo que Portugal tem está naquela casa, a casa dos traidores, a Assembleia da República”. Então, de costas, a manif vai apoiar o prof doc Salazar pelas suas “ideias, convicções e honestidade”, uma honestidade que os políticos hoje não têm porque “andam a roubar, não chegam aos calcanhares deste grande estadista, e além disso estão carregados de ligações ao mundo da pedofilia”, são “uns vendidos”, “a escumalha dos nossos dias”. Em suma: “Vamos declarar o nosso amor ao Estado Novo”. Aqui chegado, Machado diz que estão “a ser pressionados de todos os lados para cancelar” a manif, mas isso não acontecerá. A câmara de Lisboa já foi notificada, a PSP já foi avisada, garante: “Nada nos demoverá.” E, contra “os terroristas de Abril” que oprimiram a saudade do Estado Novo, Machado evoca os patriotas que guardaram as suas “fardas da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa”.

5. É penoso transcrever isto. Mas o nazi que assim fala em nome de uma organização chamada Nova Ordem Social foi difundido para milhões pela TVI. Mais, e pior. A Entidade Reguladora da Comunicação (ERC) julgou sumariamente as queixas recebidas, concluindo que a TVI nada fizera de errado. Uma só voz na ERC, o veteraníssimo Mário Mesquita (mestre de tantos jornalistas, nas redacções e na universidade), se levantou. “Declaração de voto de vencido”, diz o documento dele, datado de anteontem. E conclui: “A defesa do princípio de liberdade de expressão e de programação (…) não significa que se entenda que essas liberdades não tenham limites, ou que possam ser invocadas para justificar o acolhimento de atos mediáticos ofensivos dos princípios fundadores da democracia portuguesa.”
Caro Mário Mesquita, o seu voto vencido é o meu, e o de muitos. Como detestaríamos estar do lado dos vencedores. Esses são agora os cúmplices 1) da ofensa à família de Alcindo Monteiro e a boa parte da população portuguesa 2) da ameaça que Machado e os seus nazis representam para todos os portugueses ou residentes negros, muçulmanos, judeus, gays.
E vão continuar a fazer o quê na ERC? Julgam que representam quem?

6. A crónica de hoje coincide com os 80 anos de um jovial português, literalmente heróico, o arqueólogo Cláudio Torres. Combateu a ditadura de Salazar, esteve preso pela PIDE, fugiu de Portugal para o Norte de África num barquinho com a mulher, Manuela, grávida, viveu exilado, voltou para fazer a democracia, e escavar o passado.
Uma das ideias caras a Cláudio é a de que nunca houve invasão islâmica da Península Ibérica em 711. O islão entrou pelo comércio, pelos portos, aos poucos. O que havia até então era um cristianismo antigo, médio-oriental. Cristãos, judeus e muçulmanos coexistiram bem antes da invasão real, posterior, a dos cavaleiros católicos.
Cláudio Torres foi vital para questionar vários mitos. Mostra-nos que isso de Portugal são muitas camadas, e inesperadas. Antídoto para as inanidades nacionalistas, racistas, islamofóbicas, anti-semitas que os nazis querem plantar à força. Falam eles na “reconquista da pátria” e na “expulsão dos invasores”: só parte das razões porque não deviam poder falar na TV, nem diante da Assembleia, muito menos com a ajudinha anti-constitucional dos votantes da ERC.


7. Da Constituição:
— Artº 1º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”
— Artº 9º: “São tarefas fundamentais do Estado: b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático; c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais.”
— Artº 13º: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”
— Artº 15º: “Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.”
— Artº 46º: “Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.”
Qual é a dúvida de que a Nova Ordem Social põe em causa todos estes princípios, e é anti-constitucional? Como é que uma entidade do Estado dá aval à sua propaganda? A PSP vai organizar-se para que uma organização fascista defenda o fascismo de costas voltadas para o parlamento? E quem vai proteger os alvos constantes destes fascistas, aqueles que o nazi Machado adorava esfaquear?
O salazarismo é a censura, a miséria, o exílio, o Tarrafal, a PIDE, a glorificação de um passado em que milhões foram escravizados e exterminados. Salazar foi responsável pela perseguição, opressão, tortura ou morte de milhões de pessoas, em Portugal e em África. Faz muita falta morto. Tratemos disso.

Alexandra Lucas Coelho