Um homem sentiu-se mal, perto do terraço do restaurante madrileno
Ramsés, na Puerta de Alcalá, ontem. Havia muita gente nas ruas, apesar do
início da madrugada. Chegou a ambulância e os enfermeiros inclinaram-se para o
homem e, logo, deram um salto: ele tinha pacotes de plástico amarrados à volta
do corpo. Bomba!!! Agentes da polícia municipal, que passavam por ali,
conseguiram segurar os braços do homem, que não reagia, talvez porque a
indisposição, que levou a ambulância à Plaza de la Independencia, fosse
sincera.
Depois da descoberta do ataque terrorista iminente, chamou-se a brigada
de minas e armadilhas, que logo fechou a circulação na praça e remeteu os
clientes do Ramsés para o fundo do restaurante, local abrigado. Entre eles, eu.
Desculpem, ainda não me apresentei, chamo-me Bond, Sebastião Bond. Na verdade,
não é meu nome, é pseudónimo, nome de guerra ou de pena, como quiserem. Espero
vender este artigo para o Diário de Notícias, de Lisboa. Vivo disso, à minha
volta estão sempre a acontecer coisas extraordinárias. E a proximidade suscita
o interesse dos jornais: certamente Lisboa vai querer saber o que se passou na
madrugada de ontem em Madrid.
Acontecimento extraordinário é, por exemplo, um avião que não cai e as
autoridades demorarem a reconhecer que não caiu. Quer dizer, um triângulo das
Bermudas ainda mais espetacular. No último século, 50 navios e 20 aviões
desapareceram no Caribe, mas eu refiro-me a um acontecimento ainda mais
misterioso: um avião que deixa de existir ainda antes de ter existido. Chamariz
que sou para acontecimentos assombrosos, o tal avião ainda me há de calhar.
Entretanto, cá estava eu no fundo do restaurante Ramsés mas com boa vista para
a Puerta de Alcalá, onde aconteciam coisas. Haveria de descobrir quão
invulgares eram.
Desde logo, a monumental Puerta de Alcalá. Durante a Guerra Civil, na
Madrid republicana, fez-se lá uma homenagem, com uma faixa "Viva a União
Soviética" encimando três grandes fotos dos líderes soviéticos, Litvinov,
Estaline e o marechal Voroshilov, penduradas nos arcos centrais. Finda a
guerra, com a vitória de Franco, no sopé do monumento celebraram-se missas. Eu
pensava nessas reviravoltas históricas, ao mesmo tempo que deitava um olhar
para o terrorista no chão e os dois polícias municipais a mantê-lo de braços
presos.
Comecei logo a alinhavar, no meu moleskine, a reportagem que haveria de
enviar para o jornal que ia pagar-me a reportagem. Ainda pensei escrever um
texto sobre os meandros psicológicos dos terroristas. Tão brutos nos atos e,
depois, dá-lhes um chilique que alerta uma ambulância e esta estraga, ou pelo
menos adia, a ida até às 77 virgens... Mas, refletindo melhor, considerei que o
leitor português não está preparado para uma análise compassiva sobre
terroristas. Quer se queira quer não, isto do jornalismo consiste muito em
albardar o burro à vontade do dono.
Ficaram a perder os leitores. Há por aí um documentário sobre
terroristas destinados a mártires em Raqqa, Síria, no começo da sublevação do
Estado Islâmico. Um britânico convertido, estava excitado com a ideia, falava
para a câmara ansiando pelo dia em que se faria explodir. No dia em que lhe
anunciaram o glorioso destino, fosse por fraqueza de alma ou verdura de fé,
foi-se abaixo das canetas. Como o coitado que eu via, de longe, na rua, de
cócoras.
Sou um profissional, vivo disto de escrever e tinha de arranjar
assunto. Lembrei-me, então. Não se hesita em abater uma útil mala solitária só
porque se suspeita de explosivos. A polícia rebenta com tudo, couro e rodinhas.
E, agora, um canalha de um assassino não levou logo com um tiro na testa! O que
pouparia o trabalho dos polícias, obrigados a revezar-se para lhe tolher os
movimentos. Arriscando até a vida da própria autoridade: quem nos dizia que o
Daesh já não tinha inventado o botão detonador impulsionado pelo bater dos
cílios? Pois ali estávamos, naquele compasso de espera, certamente ditado por
ordens do governo...
Governo, é isso! Ah, isso, eu sabia que iria ter sucesso em Lisboa:
noticiar em direto uma bagunça política em Madrid. E comecei a escrever:
"A desastrosa gestão do ataque terrorista pode pôr fim à carreira política
de Mariano Rajoy." Olhei à volta, eu era o único animado com alguma coisa.
Os outros clientes, catrafiados no fundo do restaurante, deitavam olhares
furibundos àquela espera toda. Escrevi: "Aluvião de críticas dos
madrilenos contra Rajoy." E fui por aí adiante, em texto objetivo e seco
(estive vai-não-vai para meter uma queda de avião na Puerta de Alcalá, mas
reservei-a para outra ocasião). Hei de precisar do pseudónimo mais vezes.
Entretanto, chegaram os cães que cheiram explosivos... Boa, mais um argumento.
Escrevi no moleskine: "Governo espanhol expõe cães inocentes."
Foi então que levantei os olhos e reparei que os polícias municipais
largaram o terrorista e os da brigada de minas puseram-se a mexer, primeiro com
certo medo, depois à vontade, nos pacotes de dinamite. E deram-nos ordem para
irmos para casa. Soube pela mulher de um polícia que os pacotes eram de
dinheiro (180 mil euros, em notas de 100 e 500) e do homem nada se sabia, senão
que um tipo que tem aquilo no corpo, a última coisa que queria era
explodir-se...
Fiquei sem assunto, mas garanto-vos que o essencial que contei existe:
a Puerta de Alcalá, há centenas de anos, e, ontem, um homem ter sido lá detido
por levar 180 mil euros amarrados no corpo. Ah, outra coisa: e que do Rajoy
muita gente não gosta, também suspeito, mas para eu o escrever num jornal
prefiro dar o meu nome.
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