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quinta-feira, 6 de abril de 2017

As canções da minha vida.

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ZÉ CACILHEIRO
1966

Este país esquece com chocante persistência os seus valores. Começa por esquecê-los ainda em vida, condenando-os ao ostracismo, e acentua essa tendência depois do seu desaparecimento físico, enclausurando-lhes a memória sob sucessivas pedras tumulares. Como se nunca tivessem existido.
Isto sucede vezes de mais no domínio da expressão musical. Grandes compositores, grandes orquestradores, grande musicólogos que tiveram o condão de tornar este povo menos duro de ouvido acabam por morrer duas vezes. A primeira, paradoxalmente, quando ainda se encontram entre nós mas já foram cobertos pelo manto do silêncio, acentuado pela ignorância dos responsáveis “culturais” e pela amnésia mediática.
Tenho pensado nisto sempre que parte alguém que nos deixou um legado de belas partituras. Recebem uns parágrafos de gélido obituário nos jornais e eclipsam-se da memória colectiva, sem que ninguém pareça interessado em colmatar essa injustiça. Gente como Alain Oulman, Carlos Nóbrega e Sousa, Manuel Paião, José Calvário, José Niza, Pedro Osório, Fernando Correia Martins – ainda há pouco Arlindo de Carvalho. Todos foram capazes de nos dar muito boa música. Nenhum deles merece ser perpetuado no silêncio.

Tendo nós um canal público de televisão, compete-lhe funcionar como memória viva da nossa comunidade musical. E houve um período em que isso aconteceu. No final dos anos 70, num programinha de humor e música intitulado A Feira, a RTP ainda a preto e branco convidou antigos compositores e conversou com eles, apresentando-os pela primeira vez à minha geração. Maestros como Frederico Valério e Carlos Dias, só para mencionar dois dos que passaram nessas emissões (que devem ter sido apagadas dos registos da TV estatal, pois nunca as vi incluídas na RTP Memória).
Uma fórmula ampliada e melhorada em 1981, já a cores, com E O Resto São Cantigas, pela mão dos três mosqueteiros Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz (também responsáveis por Zip Zip e A Visita da Cornélia, outros mega-sucessos da RTP). Aí escutei pela primeira vez o Zé Cacilheiro, interpretado ao vivo pelo seu primeiro e melhor intérprete, o actor José Viana.
Este fado-canção entrou-me logo no ouvido. E desde então tem-me acompanhado por diversas paragens e nas mais diversas situações. Já o cantei no duche, no carro, na praia. Já o cantei em restritos grupos de amigos: «Quando eu era rapazote / Levei comigo no bote / Certa varina atrevida. / Manobrei e gostei dela / E lá me atraquei a ela / P'ró resto da minha vida.»
Não terá sucedido só comigo. Foi um sucesso instantâneo – do disco, da rádio, do transístor, da cassete. Nasceu em 1966 no palco do Teatro Variedades como número musical de uma rábula da revista Zero Zero Zé – Ordem Para Matar, protagonizada por José Viana e Carlos Coelho a propósito da inauguração da ponte sobre o Tejo, ocorrida nesse Verão.
“Enquanto houver um passageiro a ir no bote, a exploração continua”, dizia o sarcástico e talentoso Viana, em aberta alusão a um dos slogans do salazarismo naquele ano em que se cumpria o 40.º aniversário da chamada Revolução Nacional. As plateias, habituadas a decifrar entrelinhas, estoiravam à gargalhada.

Espaço de liberdade condicionada entre as malhas da censura, a revista à portuguesa vivia então um dos seus períodos áureos. Alguns dos maiores sucessos de sempre da música portuguesa nasceram precisamente ali no Parque Mayer, onde nenhum actor se negava a cantar.
O Variedades era um palco mítico, onde nas quatro décadas anteriores haviam desfilado Vasco Santana, Beatriz Costa, Teresa Gomes, Mirita Casimiro, Irene Isidro, Raul de Carvalho, Laura Alves, Manuel Santos Carvalho, Costinha, Maria Lalande, Eugénio Salvador, Hermínia Silva, Humberto Madeira, Amália Rodrigues, Eunice Muñoz e Solnado.
Zero Zero Zé – Ordem Para Matar foi o último grande sucesso daquelas tábuas: ainda nesse ano, o teatro era destruído por um incêndio quando ali se exibia a peça Descalços no Parque, de Neil Simon.

Zé Cacilheiro deveu-se à  inspiração de Carlos Dias associada a dois letristas de muito mérito e também hoje injustamente esquecidos: Paulo da Fonseca (1913-73) e César de Oliveira (1928-88). As melhores cantigas das revistas surgiam destas colaborações impostas pela urgência da encomenda.
Mérito acentuado pelo talento de José Viana, para sempre associado ao tema, que viria a ser registado também como Fado do Cacilheiro na Sociedade Portuguesa de Autores. O vinil de 45 rotações editado ainda em 1966 foi durante anos um dos campeões dos programas de “discos pedidos” que garantiam grandes audiências radiofónicas.
“Desta vez canto um fado. Não como cantaria um fadista mas como suponho que o faria um cacilheiro de meia-idade que, quando era mais novo, cantava nas revistas da sociedade de recreio lá do seu sítio.” Palavras do próprio actor, impressas nesse disco que tanto sucesso fez. E que para sempre ficaria ligado ao imaginário de Lisboa.
Outros gravaram também o tema – entre eles, Fernando Farinha, António Mourão e Nuno da Câmara Pereira. Mas ninguém conseguiu igualar José Viana.

Carlos Dias não só compôs: também o acompanhou com a sua orquestra na versão discográfica. E foi ele igualmente o criador de dois outros enormes êxitos da canção portuguesa nascida nos palcos da revista: Lisboa à Noite, celebrizada por Milu, e Cheira a Lisboa, desde sempre associada a Anita Guerreiro.
Estranhamente, este maestro que tanto amou Lisboa não consta da toponímia alfacinha. É tempo de a capital portuguesa lhe prestar a merecida homenagem, descerrando-lhe uma placa de rua.
E é tempo de a RTP organizar uma nova série do programa E o Resto São Cantigas, consagrada aos compositores e orquestradores que ainda se encontram entre nós e merecem que o canal público lhes preste tributo. Deixo alguns nomes, em jeito de sugestão: José Luís Tinoco, Manuel Freire, Nuno Nazareth Fernandes, José Mário Branco, José Cid, Nuno Rodrigues, António Avelar Pinho, Fernando Tordo, Sérgio Godinho, Tozé Brito, Fausto Bordalo Dias. Sem sectarismos, sem capelinhas pacóvias, sem visões estreitas. Com sopro artístico e rasgo musical.

«Sou marinheiro / Deste velho cacilheiro / Dedicado companheiro/ Pequeno berço do povo / E navegando / A idade foi chegando / O cabelo branqueando / Mas o Tejo é sempre novo.»


por Pedro Correia, em 06.04.17

Do blogue ( Delito de Opinião )

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