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sábado, 18 de março de 2017

Noções básicas de direito penal. Ou de Estado de direito:

AUTOR
                                  Miguel Sousa Tavares
Repito o que já várias vezes escrevi: não tenho opinião formada sobre a culpabilidade ou inocência de José Sócrates. Espero para ver a acusação, a defesa e o julgamento. Para ver as invocadas provas e contraprovas, ouvir os testemunhos, conhecer os documentos. Isto não impede que não possa ter uma opinião já formada sobre aspectos éticos revelados pelo caso e um juízo sobre o legado político de José Sócrates. Mas, tanto quanto sei, o que vai a julgamento não é a ética nem a política, mas sim a existência ou não de crimes por ele praticados no exercício das suas funções de primeiro-ministro — entre eles, o mais grave de todos, o crime de corrupção.
Não pretendo dar lições a ninguém, mas confesso que me custa às vezes entender como é que gente bem formada e atenta pode ter uma posição diferente desta, pois que aquilo que eu enunciei é o princípio mais básico da aplicação da justiça e do exercício do jornalismo, presentes em sociedades democráticas.

Custa-me entender como é que um artigo no Expresso da semana passada falava nas “provas” em poder do Ministério Público (MP) ou como é que Ricardo Costa falava num “processo sólido”, quando tudo o que podem saber é a versão do MP, tão diligente e incansavelmente divulgada ao longo dos últimos quatro anos.
Esse é primeiro princípio de um Estado de direito: os julgamentos fazem-se depois de conhecida a acusação e a defesa e depois de analisados os fundamentos de uma e de outra. Não se fazem com base em informações ou versões unilaterais, deliberadamente divulgadas por uma das partes, em busca de suporte mediático e popular para aquilo que, até à existência de uma sentença final, não passa de uma possibilidade ou de um desejo.
Na ‘Operação Marquês’, tal como se tornou regra em todos os casos mediáticos ocorridos na nossa Justiça, o que tem acontecido é que todo o desenrolar da investigação, todo o trabalho do MP — todas as suspeitas, indícios, invocadas provas ou apenas desejos mal disfarçados — é acompanhado, divulgado, ampliado e finalmente transformado em verdade inabalável por uma imprensa disponível e acrítica, quando não cúmplice. Que isso aconteça ao nível de um “Correio da Manhã”, já é expectável e já nem conta para nada; que aconteça também na chamada “imprensa de referência”, apenas movida pelo terror de ficar para trás na atitude justiceira que uma opinião pública formatada pelo “Correio da Manhã” reclama, é preocupante. (E chegou a altura de repetir o meu mantra, para não ser fuzilado antes do terceiro parágrafo: não sei se Sócrates é culpado ou inocente, estou a falar de algo diferente.)
E chegamos a um segundo princípio essencial de um Estado de direito: os julgamentos fazem-se nos tribunais. Não se fazem nem nos jornais nem em ajuntamentos de rua. Não sou eu nem a turba-multa que temos de decidir se fulano é culpado ou inocente: são aqueles a quem confiámos a mais nobre tarefa pública, que é a de julgar, segundo a lei e a sua consciência e independentemente do que eu ou toda uma multidão pensemos. Ora, pessoas bem formadas e atentas já devem ter percebido desde há muito que, neste tipo de processos, sobretudo envolvendo políticos: a) as fugas de informação constantes, e já nem cirúrgicas, vêm sempre do lado da investigação; b) não sendo de crer que o seu principal objectivo seja o de ajudar a vender jornais da imprensa sensacionalista, terá de ser então o de procurar na opinião pública pronta-a-consumir o respaldo para as suas posições; c) assim disfarçando a sua incapacidade ou incompetência investigatória para fazer prova do que se propunham e pondo-se ao abrigo de uma possível derrota em tribunal, a qual justificarão então por “pressões políticas”.
Os julgamentos fazem-se nos tribunais. Não se fazem nem nos jornais nem em ajuntamentos de rua
Terceiro princípio: o da igualdade das partes. Não se confunde com o princípio de facultar à defesa todos os meios, depois de a acusação ter usado os seus: trata-se de garantir que ambas jogam com armas iguais ou tão iguais quanto possíveis. É o caso dos prazos processuais. No nosso Código de Processo Penal há uma curiosa diferença: enquanto os prazos para a defesa exercer os seus direitos são imperativos (ou o faz até ao final do prazo ou não tem nova oportunidade para o fazer), já para a acusação, conforme o estabeleceu a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, os prazos são “meramente indicativos”. Por exemplo, os nove meses que a lei fixa para o MP deduzir uma acusação serão uma mera sugestão: por cortesia, o MP pode cumpri-lo, mas, se não conseguir, se não quiser, se tiver andado a arrastar os pés, basta-lhe explicar ao seu superior hierárquico que o caso é “especialmente complexo” e obtém uma prorrogação. Quantas, por quanto tempo mais? Não há limite, o único limite é o da prescrição dos crimes (felizmente, este ainda não é “meramente indicativo”). No caso Sócrates, os nove meses já vão em cinco prorrogações e estão a chegar aos quatro anos: é como aqueles jogos em que o árbitro não acaba o jogo enquanto determinada equipa não marcar golo.
Ora, eu não quero fingir que não sei que casos destes são de investigação complicada e difícil e que, à partida e em teoria, é mais fácil a posição de quem não tem o ónus de provar uma coisa, mas apenas o de desmentir a prova alheia. Todavia, também não estamos como há 20 anos, quando a Suíça lavava mais branco e os offshores eram virtualmente impenetráveis. Seguir o rasto do dinheiro é hoje infinitamente mais fácil e ninguém tem culpa também de que, neste caso e fazendo fé na imprensa que lhe serve de relações públicas, o MP aparentemente se prepare para ir a julgamento suportado apenas no que chamam “provas indirectas” ou “indiciárias”. O facto é que, depois de quatro anos de investigação, dispondo de infinitamente menos meios em termos de custos e de pessoal, a defesa de Sócrates vai ter apenas o prazo impreterível que a lei lhe faculta (creio que 30 dias) para contestar o trabalho de quatro anos de investigação. Alguém pode ter dúvidas de que se pudesse também ela prorrogar esse prazo, por dois, quatro ou seis meses, isso lhe daria imenso jeito para o julgamento?
A terceira prorrogação do prazo para o dr. Rosário Teixeira concluir enfim a sua investigação tornou-se uma banalidade, tal e qual como as fugas de informação, em violação do segredo de justiça. Mas, por ser banal, não deixa de ser escandalosa a ligeireza com que se despreza qualquer noção, ainda que longínqua, de igualdade entre as partes. Assim como é escandaloso que, depois de ter mantido o arguido em prisão preventiva durante dez meses, invocando fortes indícios de culpabilidade, seja só ano e meio depois do fim dessa prisão que um testemunho caído do céu (perdão, vindo expressamente de Angola), tenha trazido ao processo os célebres “factos novos” que finalmente terão iluminado tudo… e justificado mais um adiamento. Ou que a dois dias de acabar o último prazo, fixado três meses antes, ainda andassem os pobres investigadores a ouvir à pressa arguidos e suspeitos e a realizar buscas domiciliárias, num processo que nos juravam estar já solidamente cimentado.
(Mais uma vez: não sei se o homem é culpado ou inocente, espero para ver. Por ora, faço apenas uma pergunta: aqueles que já decidiram de há muito que ele é culpado, se um dia se virem a contas com a Justiça, gostariam de ser tratados da mesma maneira?). Pois eu não. Prefiro o conforto daquilo a que nos países civilizados se chama um Estado de direito.

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 18/03/2017)

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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