Depois de 4 de Outubro a bola estará muito provavelmente no campo das
esquerdas. Esperemos que as elites estejam à altura dos anseios populares.
As eleições legislativas que se aproximam indicam o fim de um período
de mais de quatro anos durante o qual a direita governou plenipotenciária.
Por um lado, porque PSD e CDS-PP dispuseram de uma maioria absoluta de
deputados que lhes permitiu aprovar sem problemas praticamente todas as suas
propostas, excetuando aquelas que colidiram com o enquadramento constitucional.
Por outro lado, porque o chamado programa de assistência financeira e a
presença da Troika funcionou como um biombo útil para as forças no governo
legitimarem o seu próprio radicalismo ideológico com a suposta inevitabilidade
das medidas a aplicar. Finalmente, porque tiveram na Presidência um PR que,
apesar de estar no seu segundo mandato, praticamente se autoanulou deixando de
funcionar como contrapeso da maioria no parlamento, como acontece geralmente no
nosso sistema semipresidencial, e de guardião da democracia. Também por isto as
próximas eleições legislativas e presidenciais estão ligadas. Neste artigo,
irei refletir sobre o que está em jogo nestas eleições, legislativas e
presidenciais, e sobre a importância de uma mudança completa de protagonistas e
forças políticas no poder. Antes, porém, é preciso começar com a questão da
vinda da Troika e com balanço do mandato da direita que ora termina.
1. A vinda da Troika e o legado da direita no poder
É bem sabido que a direita no poder, máxime o PSD, teve um papel chave
na vinda da Troika e no desenho do
programa de assistência financeira. Primeiro, porque o PSD foi o partido de
suporte do governo minoritário socialista entre 2009 e 2011: as peças mais
importantes da governação (orçamentos, PEC I, II e III, etc.) foram aprovados
com o apoio do PSD. Até às eleições presidenciais de Janeiro de 2011 um outro
protagonista, Cavaco Silva, tudo fez para que este bloco central (em regime de
acordo parlamentar, não de coligação) funcionasse na perfeição. Basta rever-se
na imprensa da época o que se passou com a aprovação do orçamento de Estado
para 2011 e os “mil e um” esforços e iniciativas do PR para que o bloco central
funcionasse. Uma vez reeleito, porém, Cavaco mudou de agulha: o discurso de
tomada de posse em 2011 é o levantar da bandeirinha verde para o PSD poder
livremente retirar o apoio político ao governo minoritário socialista,
indispensável à sua sobrevivência. O chumbo do PEC IV, que depois levaria à
esperada e anunciada demissão do primeiro-ministro (aceite por Cavaco “sem
pestanejar”), foi apenas o corolário deste processo. Claro que o processo se
caracterizou ainda por uma coligação negativa (BE, PCP/CDU, PSD e CDS-PP) no
espoletar da queda do governo socialista, mas fica assim clara a
responsabilidade primeira da atual maioria e do PR na vinda da Troika. Não
fosse essa quebra de apoio político, e a rejeição do programa de austeridade já
consensualizado com as instituições europeias (PEC IV), e Portugal teria
permanecido com austeridade, quiçá com uma austeridade mais severa do que até
aí, mas sem tutela externa. Aliás, reveja-se a imprensa da época e facilmente
se verificará que foi a quebra do bloco central (isto é, o fim do apoio do PSD
ao governo maioritário do PS) e crise política subsequente à demissão do
primeiro-ministro e convocação de novas eleições que fizeram disparar o ataque
das agências de notação financeira e dos mercados de capitais à divida pública
portuguesa. Já foi dito e é facilmente documentável que a direita,
especialmente o PSD, teve um papel chave no desenho do programa da Troika:
ainda recentemente Eduardo Catroga o reconheceu mais uma vez. Mas basta
recordar que o atual primeiro-ministro não se cansava de repetir que queria ir
além da Troika, porque o programa era indispensável para recuperar Portugal da abastança
injustificada (tínhamos vivido todos acima das nossas possibilidades), ou que a
direita pintava com as cores mais negras possíveis a situação de Portugal então
de modo a obter os maiores ganhos na sua desejada dose austeritária (ver o meu
“Autoflagelação e terapia de choque”, Público, 9/5/2011), para se perceber que
a direita literalmente exultou com a vinda da Troika.
Mas e qual é legado da direita e do seu Presidente neste exercício? Eu
resumi-lo-ia em três ideias forças. Primeiro, um fortíssimo contributo para a
deslegitimação da democracia e da confiança nas instituições políticas por via
da violação reiterada, sistemática, profunda e, aos olhos da maioria da
população (inquirida sobre o assunto), injustificada de compromissos eleitorais
fundamentais (uma pedra basilar da democracia). Passos Coelho sempre disse que
queria ir além da Troika, é verdade, mas também disse clara e taxativamente que
queria sobretudo “cortar nas gorduras do Estado” e que não seria necessário
(ele não o faria, garantiu então reiteradamente) cortar salários, cortar
pensões ou subir o IVA na restauração, por exemplo. Segundo, a governação
austeritária da direita no poder ficou marcada pela assimetria: os contratos e
compromissos com os eleitores, assalariados e pensionistas foram grosseiramente
violados, mas os contratos com os capitais rentistas e com as parcerias
público-privadas não; neste período muitos ricos viram aumentar as suas
fortunas e/ou algumas grandes empresas migraram alegremente, e sem censura
político do poder, os seus capitais para fora do país de modo a se isentarem da
austeridade; etc., etc. Finalmente, em matéria de resultados basta pensar que
apesar dos cortes de salários e pensões (não previstos no programa original da
Troika ou nos compromissos do PSD e CDS-PP), dos aumentos de impostos e das
extensíssimas privatizações (tudo sempre muito acima do previsto), a divida
pública (130% do PIB) é hoje muito maior do que em 2010 (90% do PIB). E a
tibieza da recuperação (no desemprego, na produção de riqueza, etc.) é
claríssima. Ou seja, além de uma deslegitimação pelos procedimentos há também
uma deslegitimação pelos resultados.
ANDRÉ FREIRE NO PU´BLICO
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