"Faço parte de uma raça de homens que paga aquilo que deve",
disse Pedro Passos Coelho, em Outubro de 2012, a propósito da dívida que
Portugal mantém com os seus credores. A afirmação do primeiro-ministro era todo
um programa moral, de condenação ao calote e daqueles que, de forma mais ou
menos tíbia, defendem a renegociação dos nossos compromissos.
Dois anos mais tarde, socorrendo-se da mesma lógica punitiva aos que
não cumprem, seja porque razão for, não hesitava em condenar: "Se há quem
se ponha fora das suas obrigações com a sociedade, tendo muito ou pouco, esse
alguém está a ser um ónus importante para todos os outros que têm um fardo
maior."
Vem esta revisitação à história recente a propósito das dívidas do
cidadão Passos Coelho à Segurança Social. Pedro, soubemo-lo nesta semana, é,
afinal, homem vulgar. Imperfeito como todos nós. Tem pecadilhos e esqueletos no
armário que, a qualquer momento, lhe saem ao caminho para desfazer a imagem de
responsabilidade à prova de bala.
Antes de mais, e para que não haja equívocos, não ponho em causa a
probidade do primeiro-ministro que, até prova em contrário e sem ponta de
encómio, julgo inquestionável. Mal estaríamos se assim não fosse. Do que se
trata é de autoridade política e moral. É este primeiro--ministro, e não outro,
que se atira como gato a bofe às famílias que não cumprem as suas obrigações
fiscais, penhorando tudo o que há para penhorar, tantas vezes para além do que
a dignidade humana tolera. É este primeiro-ministro, e não outro, que trata com
desprezo aqueles que beneficiam de pensões para as quais diz não terem
descontado. É este primeiro-ministro, e não outro, quem apregoa constantemente
a insustentabilidade da Segurança Social por défice de financiamento. É, em
síntese, este primeiro-ministro, e não outro, que, qual pregador de vão de
escada, exorta à exigência e à responsabilidade que impõe aos outros, mas que,
manifestamente, não pratica para si próprio.
Os factos são o que são. Passos Coelho foi relapso nas suas obrigações
com o Estado durante, pelo menos, cinco anos. Voltou a sê-lo, em 2012, quando
questionado pela primeira vez sobre o assunto e inventou uma desculpa
esfarrapada para não regularizar logo ali a situação. À sexta explicação, e
depois de já ter invocado um inqualificável desconhecimento da lei, confessou
vergonha por, umas vezes por desleixo outras por falta de liquidez, não ter
honrado as suas obrigações com o Estado. Se assim foi, é a prova de que,
afinal, foi ele quem viveu acima das suas possibilidades.
Na prática, entre 1999 e 2004, Pedro Passos Coelho teve o seu quinhão
de responsabilidade na insustentabilidade da Segurança Social.
No relato sobre si próprio que nesta semana quis fazer, Pedro Passos
Coelho, além de se fazer de vítima de perseguição pessoal, apresentou-se como
um homem comum, com imperfeições e gozando de tratamento idêntico ao de
qualquer cidadão. Sucede, porém, que um primeiro-ministro não é um homem comum
nem um cidadão vulgar. Não se lhe exige perfeição, que é coisa a que só os
deuses aspiram, mas que seja cumpridor e exemplar.
Passos Coelho já tinha, no passado recente, dado mostras de desleixo,
para dizer o mínimo, quando foi incapaz de esclarecer a sua relação
profissional com a Tecnoforma e os proveitos que dali obteve. Com este
"cadastro", a questão não é de imperfeição, mas de incumprimento. Não
é de natureza pessoal, mas política. Porque Passos Coelho, repito, não é um
simples cidadão, é o primeiro-ministro.
Se fosse grego, e parafraseando a propaganda alemã citada há não muito
tempo por um diligente e intrépido repórter da nossa praça, Passos Coelho seria
um paralítico. Se fosse sueco já tinha caído do seu posto. Como é português, e
apesar de já ter havido um primeiro-ministro demitido por se sentir um bebé
numa incubadora a quem todos davam estaladas, vai continuar em funções. Porque
Portugal é assim mesmo, como Pedro Passos Coelho, tolerante com os fortes e
implacável com os fracos.
NUNO SARAIVA
Hoje no DN
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