O miúdo está a olhar para mim, sem espanto, sem medo, como se o facto
de não ter pernas lhe fosse indiferente. A dor e o sofrimento desapareceram-lhe
da expressão. Mas os olhos, esses, mantêm uma profundidade atenta, que não
recrimina. Olha-me, simplesmente, sem nada esperar de mim: olha-me. Só se lhe
vê os olhos e parte do rosto. O que sobra são ligaduras e tubos. Olha-me, e no
olhar fixo, mas cheio de entendimento, não há susto, nem assombro, nem mesmo
espera. Não tenho a certeza (já não tenho certezas de coisa alguma) mas
parece-me que sorriu. Está no corredor do hospital, o hospital e o corredor
estão repletos de macas e de estranhos objectos rolantes, os gritos e a
gritaria ouvem-se à distância. Menos o miúdo que me olha, sereno, nem um gesto,
nem o mais módico movimento. Olha-me. Apenas me olha.
Passam mulheres embiocadas, passam homens derreados, passam velhos e
velhas. Todos com as fisionomias desfiguradas de amargura, se assim posso
designar a maior dor do mundo. Não gritam, mas quando gritam desejam que os
seus gritos cheguem ao céu da revolta.
O miúdo dobrou ligeiramente os olhos para me observar, para que eu o
não esqueça. O miúdo sem pernas. Passa, agora, um rapaz acelerado, empurrando
um estirador, feito maca, com duas raparigas, os trapos que as cobrem cheios de
sangue. Uma delas não dá sinais de vida, e um braço descaiu-lhe da superfície
onde vai. «Médico! Médico!», não grita: implora, e alguém lhe acode. «Já não
temos antibióticos. Não temos quase nada», diz, e ajuda o rapaz a empurrar o
estirador.
O miúdo sem pernas move os olhos e tenta reter tudo. De súbito, cai-me
em cima a responsabilidade criminosa de só poder fazer o que sei fazer, isto, e
é tão pouco ante a imensidão desta miséria afrontosa. Sinto-me humilhado por
ser sobrevivente, é isso, e por ausência de um protesto generalizado. Não pode
haver «contraditório», nem a procura do equilíbrio mentiroso da «distanciação»
não aqui, neste crisol do inferno, nem em qualquer outro lugar onde a natureza
da barbárie escapou a todo o respeito humano e a todo o padrão moral.
Porque será que este miúdo sem pernas e, aparentemente, sem censuras
nem acusações, me olha, ou me procura com o olhar; porque será? Vejo os
escombros, prédios e ruas em ruínas, gente esgaravatando nos destroços à
procura sem muito bem saber de quê; à procura de restos, de sobras, do mais
exíguo sinal de esperança, num trapo, numa boneca, numa cadeira desventrada;
talvez num pedaço de carta: talvez.
Agora, outro homem. Joga as mãos à cabeça e olha em redor, no que foi a
sua casa. «Venho do trabalho e vinha para aqui todos os dias. Que fiz para
merecer isto?» E o miúdo sem pernas, crucificado em tantas lágrimas, olha-me
apenas. Aqui não há misericórdia nem compaixão nem remorso.
BAPTISTA-BASTOS
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