O Governo e seus fiéis, qual escola de aprendizes de feiticeiros,
transformaram o chamado manifesto dos 70 numa espécie de Voldemort, o Lorde das
Trevas da saga Harry Potter.
Os papistas do costume, vendo a tese da inevitabilidade do
empobrecimento posta em causa, sobressaltaram-se, rasgaram as vestes e
atiraram-se aos subscritores dizendo que são um bando de irresponsáveis
defensores do calote e que estão para nós como a brigada do reumático para
Marcelo Caetano. Fizeram apelos lancinantes para que saiam da frente e deixem
os sabichões mais novos trabalhar. Que são tristes, ressabiados, oportunistas e
que não passam "dessa gente" a cuja "conversa" os mercados
não dão, felizmente, ouvidos.
E o cúmulo da falta de pudor, de vergonha e, até, de canalhice chegou
ao extremo de se insinuar que personalidades como Adriano Moreira, Bagão Félix,
Manuela Ferreira Leite, Carvalho da Silva, Vítor Martins, Sevinate Pinto,
António Saraiva, Vieira Lopes, João Cravinho, Teresa Beleza ou Francisco Louçã,
para citar apenas alguns nomes, não são patriotas.
Para começo de conversa, sejamos sérios.
Nunca ouvi ninguém fazer insinuações sobre o patriotismo (ou falta
dele) - e era o que faltava que fizesse - de quem, resignado com a perda de
soberania, vai todo contente, a Berlim ou a Bruxelas, prestar vassalagem à
senhora Merkel.
Manda o rigor - que faltou, aliás, ao primeiro-ministro e a muitos
opinadores do regime - que se comente apenas aquilo que está escrito. O que o
manifesto, o tal que como o vilão das novelas de J. K. Rowling "não deve
ser pronunciado", constatou foi aquilo que toda a gente já sabe: a dívida
pública portuguesa é estratosférica. Condena-nos, como explicou com clareza o
Presidente da República no seu último prefácio, a décadas de austeridade para
garantir a sua sustentabilidade. E aponta, por isso, uma proposta de solução -
não será a única, mas é um princípio: uma "reestruturação
responsável" da dívida, no contexto europeu e dentro do nosso quadro
constitucional.
Em nenhum ponto do documento se fala de não se pagar o que devemos ou
se sugere, sequer, um perdão de dívida. O que se pretende é o que está escrito,
é saldar, até ao último cêntimo, os compromissos assumidos com os nossos
credores, obviamente em melhores condições do que aquelas que hoje existem.
Isto é, com juros mais favoráveis e com maturidades mais longas, permitindo
compatibilizar o crescimento económico e a criação de emprego com o cumprimento
das nossas obrigações.
Só por cobardia, servilismo, submissão à ditadura ilegítima dos
mercados, sectarismo ideológico e obediência cega a outros interesses que não o
dos portugueses é que se pode rejeitar o debate sobre uma matéria que é
decisiva para o nosso futuro coletivo. E só por uma qualquer pulsão totalitária
é que se faz apelo a esta espécie de asfixia democrática, em que se manda calar
quem se atreve a pensar, propor e chega a um consenso alargadíssimo - da
direita à esquerda - para encontrar soluções para o mais grave dos nossos
problemas.
Falar do pós-troika não é outra coisa que não seja discutir como lidar
com o monstro da dívida pública portuguesa. Ainda para mais quando, a partir de
setembro, as novas regras contabilísticas impostas pelo Eurostat atiram a dita
para uns inimagináveis 140% do PIB nacional.
Daí que a campanha para as eleições europeias de 25 de maio seja, ao
contrário do que afirmam os oráculos nacionais que vivem capturados pelos
mercados e pela finança, o tempo certo para fazer este debate. Até por uma
razão que toda a gente percebe: a austeridade estrangula a economia que não cresce.
Sem crescimento não há pessoas. E sem pessoas que produzam não há dinheiro para
honrar os compromissos. E a inevitável negociação, é bom que ocorra enquanto
ainda temos condições para pagar o que devemos. Se esperarmos muito mais tempo,
além de condenados ao degredo económico seremos também, fatalmente, rotulados
de caloteiros.
Por tudo isto, por Portugal, venham daí mais 70, se faz favor.
NUNO SARAIVA
Hoje no DN

Sem comentários:
Enviar um comentário