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sábado, 14 de dezembro de 2013

Da grandeza e do deslumbramento:

Podíamos falar da chegada do homem à Lua em 1969, das bombas atómicas em Hiroxima ou Nagasáqui em agosto de 1945, do princípio da libertação da Europa ocupada pelos nazis com o desembarque na Normandia em 1944, da queda do Muro de Berlim em 1989, da morte criminosa de seis milhões de judeus durante a II Guerra Mundial, dos gulags estalinistas que marcaram o século XX, ou dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos da América, só para dar alguns exemplos.
Podíamos até ser mais frugais (ou paroquiais) e falar do nosso regresso à liberdade a 25 de abril de 1974. Ou, até, comezinhos e apontar o nascimento de um primeiro filho ou de um neto.
Mas Cavaco Silva, com a sua proverbial hipocrisia política e notório provincianismo, elegeu para acontecimento "mais marcante" de sempre não o desaparecimento de Ben Laden ou de Hitler, de Kadhafi ou de Saddam, mas a morte esperada e natural de um ancião de 95 anos. "O Presidente Obama veio, foi simpático e cumprimentou-nos muito à vontade. Estava sentado muito próximo de mim e do senhor ministro dos Negócios Estrangeiros", disse, sem disfarçar o deslumbramento de quem esteve no mesmo palco com algumas das maiores figuras do planeta.
Ao contrário do Presidente da República, nunca estive com Nelson Mandela. Nunca o conheci pessoalmente. Mas nem era preciso para descortinar naquela figura e naqueles olhos a grandeza moral do personagem.
De facto, se houve acontecimento marcante e inspirador, foi a vida e não a morte de Mandela. Se há motivo para celebrar, é o exemplo de luta travada com coragem, em todas as suas dimensões, em nome da libertação de um povo subjugado por um regime racista e criminoso. Se há memória ou legado que não podemos ignorar é, por exemplo, o discurso proferido no Supremo Tribunal de Pretoria, a 20 de abril de 1964, antes de ser condenado a perpétua, em que justificou as razões do recurso à violência, "depois de tudo o resto ter fracassado" na defesa dos mais elementares direitos humanos da maioria negra, abjurando o racismo, "venha ele de brancos ou de negros". Do que se tratou, durante demasiados anos, foi do pleno exercício de legítima defesa contra a selvajaria desumana de um governo opressor e delinquente que nem sequer reconhecia coisas tão básicas como o facto de "os negros também terem emoções, também se apaixonarem". E é por isto que, mesmo que com prejuízo da realpolitik, do que se tratava em 1987 era de estar do lado justo da história.
E nem sequer vale a pena invocar o artigo 21.º da nossa Constituição - Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública - ou o falso argumento da defesa dos interesses da comunidade portuguesa. Nessa época, já todos tinham percebido que o apartheid estava, felizmente, a chegar ao fim e que uma nova era haveria de nascer, mais dia menos dia, na África do Sul. Daí que, não fora o gigantismo moral de Mandela, muito provavelmente os primeiros alvos dos hoje impensáveis ajustes de contas teriam sido os emigrantes dos poucos países que, como nós, eram condescendentes com o regime.
Inesquecível foi o dia da sua libertação após 27 anos de cárcere ou a data em que foi eleito o primeiro presidente negro da África do Sul.
A estatura de Mandela, que tinha obviamente muitos defeitos e assumiu tantas vezes opções discutíveis, mede-se pelo exemplo. Pela capacidade de pegar em armas quando foi preciso para defender a dignidade humana, de dar a mão aos carniceiros quando foi necessário evitar banhos de sangue e apaziguar um país inteiro, de pedir também ele perdão pelos excessos cometidos pelo ANC plasmados nos documentos finais da Comissão de Verdade e Reconciliação.
E é por isto e muito mais que Nelson Mandela ficará para sempre como figura maior da história. Outros, nem que nasçam duas vezes, jamais passarão de uma nota de rodapé.
NUNO SARAIVA
Hoje no DN

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