Desde os idos de 1640, quando tentávamos libertar-nos de Espanha, que a
história portuguesa regista com recorrência uns aspirantes a Miguel de
Vasconcelos. Esta semana tivemos notícia do mais recente candidato ao posto. Um
tal Luiz Pessoa, manga-de-alpaca de Bruxelas que representa em Lisboa a
Comissão Europeia, é subscritor de um relatório onde são tecidas considerações
sobre a situação política nacional e desferidos ataques ao Tribunal
Constitucional.
Perante um Orçamento do Estado que suscita, mais uma vez, fundadas
dúvidas de constitucionalidade, o dito senhor avisa que "esta não é a
altura certa para o Tribunal Constitucional se envolver em ativismos
políticos", sob pena de "provocar um segundo pedido de resgate".
Analisando em retrospetiva as decisões já tomadas pelos juízes, o mandatário de
Bruxelas retira uma de duas conclusões possíveis: ou o Tribunal Constitucional
está a fazer uma interpretação demasiado restritiva da Constituição, ou pode
ser observado como real força de bloqueio, com influência direta na política
orçamental do Governo que, na sentença deste amanuense, arrisca mesmo o
"colapso" em caso de chumbo de algumas das medidas propostas no
Orçamento para 2014.
Este é, por ventura, um dos mais traiçoeiros e despudorados ataques
feitos ao Estado de direito, à soberania - mesmo que limitada no plano
financeiro - e à democracia e suas instituições de que há memória em tempos
recentes. Surge, aliás, na sequência de outra desavergonhada declaração do
presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, que sem qualquer pejo ameaçou
os juízes do Palácio Ratton com um "caldo entornado" caso estes não
validem, por exemplo, o esbulho nos salários e pensões de sobrevivência ou a
retroatividade na convergência das reformas, abdicando assim da sua função, que
é de verificar a conformidade das leis com as normas constitucionais.
Como é óbvio, ninguém está acima da crítica nem da discordância. Mas
uma coisa é contestar uma decisão. Outra bem diferente é chantagear e ameaçar
um órgão de soberania fundamental à nossa democracia.
A falta de respeito pelo Tribunal Constitucional português tem sido
prática corrente nos últimos dois anos, seja externa ou internamente. Em
contraste, aliás, com a submissão e reverência obscenas destinadas ao seu
congénere alemão. Não consta, por exemplo, qualquer pio de desagrado ou
desconforto quando os juízes de Karlsruhe, em 2009, reviram a doutrina alemã
sobre a Europa ao estabelecerem o primado do Bundestag, o parlamento de Berlim,
sobre a aplicação dos tratados europeus. E nem sequer um esgar de protesto pelo
espetro de chumbo pelo tribunal alemão à possibilidade de o Banco Central
Europeu - que é suposto ser autónomo e independente - comprar obrigações
soberanas dos países em dificuldades, travando assim a escalada dos juros e
permitindo-lhes o regresso pleno ao mercado. Aliás, caso esta rejeição se
verifique, bem se pode dizer adeus aos planeados programas cautelares que se
seguem aos ajustamentos em curso, consagrando-se de forma institucional, numa
deriva antidemocrática intolerável, o Tribunal Constitucional alemão como o
verdadeiro tribunal de justiça das comunidades.
Perante a traição dos mais elementares valores democráticos, há duas
atitudes possíveis: a capitulação, aqui sinónimo de cumplicidade, ou a
indignação.
A inaceitável e chantagista intromissão da Comissão Europeia,
humilhante e quase colonizadora, nos assuntos internos de Portugal deveria ter
merecido repúdio por parte das mais altas esferas da Nação. Se não estivesse
capturado e apavorado, o Presidente da República, que deveria ser o garante da
dignidade das instituições democráticas, tinha a obrigação de chamar a Belém -
ou mesmo ao Panamá, onde está - o "embaixador" da Comissão
exigindo-lhe explicações, um pedido de desculpas ou até dar-lhe ordem de expulsão.
É essa atitude de "sobressalto patriótico" que distingue os
estadistas daqueles que, circunstancialmente, ocupam a chefia do Estado. É,
naturalmente, o que separa o estadista Jorge Sampaio de Cavaco Silva,
simplesmente o Presidente da República.
NUNO SARAIVA
Hoje no DN
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