Regressado de uma ausência de dez dias, contava encontrar o País a
descutir a situação no Chipre (assunto que se
debatia e que eu próprio tratei no "Expresso" quando parti) ou a
situação em que Portugal ficará quando o
Tribunal Contitucional tornar este Orçamento inviável (que só pode ser
resolvida com a queda do governo). Afinal a excitação era o regresso de José Sócrates pela mão da RTP de Miguel Relvas. Sobre
as razões de Sócrates para aceitar tal convite e os efeitos que este terá no PS
já demasiadas teorias da conspiração floresceram. Prefiro concentrar-me nas
reações a esta notícia e nas suas razões profundas. E de caminho fazer um
último (seria bom que fosse o último) balanço da governação socrática.
Morais Sarmento, ministro do governante que abandonou um
País porque lhe ofereceram um melhor lugar na Europa, definiu o regresso de
Sócrates como sinal de ser um "homem
sem vergonha". Medina Carreira,
que grita hoje exatamente o oposto do que antes gritava sobre a austeridade,
acompanhou o coro. Esther Mucznik
veio mesmo comparar a contratação de Sócrates pela RTP com a exibição de um
cartaz de Hitler numa escola, usando a pornografia argumentativa para apelar à
censura. E há até uma petição,
lançada por um líder local do CDS, contra a contratação de Sócrates como
comentador político.
Tenho todas as dúvidas sobre as vantagens desta nova moda de ex-líderes partidários serem comentadores políticos.
Mas esta absoluta originalidade nacional parece ter aceitação pública. Se assim
é, não vejo porque sejam as opiniões de Marques
Mendes, Marcelo Rebelo de Sousa ou Francisco Louçã mais merecedoras de
atenção do que as de José Sócrates. Se houvesse alguma dúvida sobre a
relevância das opiniões de Sócrates ela estava respondida pela excitação que
tal anúncio provocou. Alguém perdeu cinco segundos a debater o facto de Santana Lopes ser comentador
televisivo? A televisão pública podia ter Marcelo a fazer comentário político e
não pode ter Sócrates? Agora a censura faz-se através de petições? Só temos
direito a ouvir quem um determinado grupo de pessoas aprecia?
Opus-me ao governo de Sócrates e não me arrependo de o ter feito. O seu estilo autoritário; a sua falta de consistência política, que
tantas vezes o fez ziguezaguear; a sua táctica de dividir para reinar, transformando,
à vez, funcionários públicos, professores, profissionais liberais, juízes e
sindicatos em culpados pelos males do país, isolaram-no. Teve, no entanto, uma
vantagem sobre a maioria dos seus antecessores: foi a votos e aceitou os custos da sua derrota. Ao contrário de
Soares, Cavaco, Guterres ou Durão Barroso, não deixou para outros o papel de
cordeiros para sacrifício. Se há virtude que valorizo é a coragem. E essa
ninguém consegue negar a José Sócrates.
Os seus PEC's foram os preliminares da política que está
a esmagar o País. E só tarde demais parece ter percebido como a política de
austeridade só nos poderia enfiar num buraco. Não, o seu erro não foi aumentar a dívida, que, como qualquer
pessoa informada e séria sabe, resultou do aumento dos juros a partir de 2008,
fruto da crise internacional. As leituras simplistas sobre a crise portuguesa
ainda poderiam ser toleradas há dois anos. Agora, com tudo o que sabemos sobre
o que se passa na Europa e sobre os efeitos da austeridade em Portugal, elas só
podem ser repetidas por má-fé.
Como quase todos os governantes, Sócrates fez coisas boas e coisas más.
É ele o principal responsável pela abertura
de novos mercados para as nossas exportações, que o atual governo usa como
a única bandeira que sobra de alguma esperança para o País. Foi ele que, por
impreparação ou cegueira, foi incapaz de
ver, a partir de 2008, os sinais do que aí vinha. Foi ele que, nas negociações com a troika, ainda deu
alguns sinais de querer defender alguns
interesses nacionais, enquanto Passos e Catroga jogavam tudo na intervenção
externa, que inevitavelmente levaria a uma crise política que lhes daria acesso
ao "pote". Foi ele que fez tudo para enfraquecer a sociedade civil e degradar o ambiente democrático que
agora tanta falta fazem para resistir aos abusos de poder de quem nos governa. Sócrates foi, na minha opinião, um mau
primeiro-ministro. Mas não foi o responsável pela crise económica portuguesa,
grega, cipriota, italiana...
A minha dúvida é esta: porque
causa José Sócrates tanta urticária? Ao ponto de tanta gente, passados dois
anos do início de um massacre social levado a cabo pelos que diziam que já
chegava de sacrifícios, nem o querer ver na televisão. Três razões.
A primeira: foi com ele que
a troika entrou em Portugal, que a
crise desabou sobre os portugueses e que chegámos a um beco sem saída. Esta é a
razão respeitável e compreensível.
A segunda: Sócrates tem um estilo que os portugueses não apreciam e
que, no centro-esquerda, é raro. É
direto, truculento e combativo. Esta é a única razão porque tenho, apesar
de nunca ter votado nem alguma vez me imaginar a votar nele, alguma admiração
pela figura. Antes um Sócrates desagradável do que vinte Cavacos sonsos e
trinta Passos melosos. Sócrates semeou, por boas e más razões, muitos ódios e
paixões. E isso apenas quer dizer que existiu. Deus nos livre de políticos
consensuais ou indiferentes.
A terceira: com o PS dominado pela moleza de quem o dirige e a
indecisão de quem o gostaria de o dirigir,
o regresso de Sócrates assusta. Por
concentrar o debate num passado que se quer esquecido ou por mostrar a
ineficácia do atual líder do PS e dos seus supostos opositores internos. Tanto
faz.
Fui opositor de Sócrates. Foi a sua paixão pela "terceira via" de Tony Blair (o
suicídio ideológico da esquerda), o seu entusiasmo acrítico pelo Tratado de Lisboa (a última machadada
no projeto europeu), o seu estilo autoritário (um pecado em democracia) e os
seus PEC's (que aceleraram a crise)
que me levam a não simpatizar com o seu legado. Mas não faço coro com os que o criticam por supostamente ter defendido o
investimento público (que a União Europeia aconselhou aos Estados membros
até à 25ª hora) ou por alegadamente ter
tentado adiar a intervenção externa que se adivinhava trágica. Seria, da minha
parte, uma desonestidade política.
Não faço coro com antisocratismo dos que sempre sonharam com a
revolução neoliberal que está a destruir este País. Porque sei que a demonização do anterior primeiro-ministro apenas dá
jeito a quem não quer assumir as responsabilidades das decisões que agora toma.
Escrevi, quando Sócrates era primeiro-ministro: "E tudo se resume
a livrarmo-nos de Sócrates. São sempre tão simples os dilemas nacionais:
encontra-se um vilão, espera-se um salvador. Sócrates foi um péssimo
primeiro-ministro? Seria o último a negá-lo. Mas, com estas opções europeias e
a arquitetura do euro, um excelente governo apenas teria conseguido que
estivéssemos um pouco menos mal. Só que discutir opções económicas e políticas
dá demasiado trabalho. Discutir a Europa, que é 'lá fora', é enfadonho. É mais fácil reduzir a coisa a uma pessoa.
Seria excelente que tudo se resumisse à
inegável incompetência de Sócrates. Resolvia-se
já amanhã". Não retiro uma palavra. Até porque o presente mostra como
tinha razão.
Daniel Oliveira no Expresso
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