Vais à feira de S. António em Freamunde? - Esta pergunta vinha da boca
de João Esteves e era dirigida a Alberto Galhardo. - Não sei. - O “Russo”, nome
do seu cavalo - está adoentado e como só gosta de ir acompanhado com ele está em dúvida. - Se o teu cavalo não melhorar e quiseres tens boleia na minha
carroça, gosto de lá ir e exibir os meus cavalos - gabava-se João Esteves. -
Nas vésperas digo alguma coisa, agradecia com alguma tristeza, Alberto
Galhardo.
Não era só pelo cavalo estar doente. A feira/festa como a de S. António
já não é o que era. Há uns anos dava gosto ir ali. Vendia-se de tudo. Desde os
lanifícios aos artefactos de barro e alumínio, às barracas de comes e bebes,
tubérculos, grão e feijão, estes três artigos tinham lugar próprio para a sua
venda; os propagandistas, propagandeavam de tudo, roupas de cama, calças,
guarda- chuvas para a chuva e quando fazia sol passavam a ser chamados guarda-
sois, pomadas para as feridas, pós para piolhos e para a sarna e chás de várias
espécies. Também havia o lugar para o gado bovino e cavalar, sendo este último,
mais visitado.
A feira dos cavalos era muito concorrida, até o burro, que está em via
de extinção tinha ali o seu lugar. Ao menos uma vez por ano era acarinhado.
Parecia que tinha rejuvenescido tal era a modificação: bem lavado e penteado.
Se tivesse o dom de falar sabia-se qual a pergunta. Porque não há feira de S.
António todos os dias? Os cavalos apareciam ali com grande porte, os seus donos
orgulhosos deles faziam-nos cavalgar a trote ou galope e todos admiravam a sua
exibição.
Neste dia, da parte da tarde, rapazes e raparigas não iam trabalhar com
o intuito de arranjar namoro e até havia quem dizia que era nesta feira/festa
que se fazia a troca de namorada/o. Nunca fui favorável a este tipo de
linguagem. Achava a frase depreciativa. Era usada nos animais irracionais:
burros e cavalos.
Os grupos de rapazes ou raparigas passeavam de um lado para outro,
sempre no recinto da feira. O das raparigas à espera que um rapaz se dirigisse
a alguma e perguntar-lhe se a podia acompanhar. Se aceitasse, os grupos ficavam
com menos um elemento cada e havia alguns que se desfaziam tal era a
preferência. Julgo que este hábito era usado por ser neste dia que se realizava
e realiza em Lisboa o casamento das noivas de S. António.
A culpa foi dos tempos. Todos desejamos mudanças na nossa vida. E…
assim aconteceu. Aos poucos e poucos as modificações começaram a operar. Os
lugares passaram a freguesias, estas a vilas e as vilas a cidades. Começou-se a
investir nas grandes superfícies, estas só vêem o lucro, começaram a expor nas
suas montras tudo o que há para comercializar. Se uma pessoa tiver dinheiro e
ali aparecer nu, sai de lá vestido dos pés à cabeça, não esquecendo o serviço
de tratamento do visual: cabeleireiro e manicura. Assim, as feiras começaram a
perder o seu melhor investimento: os compradores.
Por tudo isso Alberto Galhardo andava indeciso. Por um lado não sentia
grande vontade, pelos factos descritos, por outro, não se podia juntar aos seus
parceiros e alguns já não via desde do ano transacto. Também pensava que podia
ser o último S. António da sua vida. Quando assim é aproveita-se como se fosse
o último. Já não ouvia a Banda de Música de Freamunde desde a festa da N.
Senhora da Conceição e era pelo S. António que gostava de ouvir o concerto para
saber se a época ia ser de arromba. Nesse dia o concerto costumava ser bom. É
só a Banda de Freamunde a actuar e costumam tocar o seu melhor reportório.
Sabiam que ali se deslocavam grandes apreciadores de música e queriam agradar
porque a partir dali vinham mais contratos.
O Russo denotava melhorias mas não queria sujeitá-lo a grandes
sacrifícios. A distância não era grande. A freguesia de Ferreira está ligada a
Freamunde. Se nos outros anos o levava não era pelo motivo de ir montado nele,
mas sim, para lhe dar como prémio o esforço de um ano. Como o homem gosta de se
encontrar com os seus amigos nas feiras e romarias também os cavalos devem ter
os mesmos gostos. Montava nele para não ouvir as “bocas” que geralmente se
ouvia, quando se ia a pé, com o cavalo pela mão, como na história infantil:
" o velho, o menino e o burro."
Ia avisar o João Esteves que aceitava a sua boleia. Não era só pela
boleia, mas sim pela companhia, tinha João Esteves como um bom conversador.
Falavam de tudo, principalmente dos tempos idos. Também não queria perder a
procissão em honra a S. António. Freamunde tinha um carinho enorme por este
santo e a demonstração via-se na procissão. Além disso tinha uma promessa a
cumprir. Os objectos perdidos tinham aparecido, depois de ter pedido ajuda a S.
António, que é protector dos pobres, no auxílio na busca de objectos ou pessoas
perdidas e casamenteiro, pois não falta quem se socorra a ele para esse fim.
RESPONSÓRIO DE SANTO ANTÔNIO
Se milagres desejais,
Recorrei a Santo António;
Vereis fugir o demónio
E as tentações infernais.
Recupera-se o perdido,
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.
Todos os males humanos
Se moderam, se retiram,
Digam-no aqueles que o viram,
E digam-no os paduanos.
Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro, a morte,
O fraco torna-se forte
E torna-se o enfermo são.
Assim passou mais um dia de S. António num ano que se tornara difícil
para ele. A sua cara-metade tinha falecido no verão do ano anterior. Os seus
filhos estavam casados, uns a viver em Lisboa e outro em França. O “Russo” não
andava bom, os anos a isso o levava e ele ia no mesmo caminho do seu cavalo.
Era o que ia a desabafar com João Esteves no regresso a casa.
Olha que a mim acontece o mesmo.
É como diz o ditado: “Quem andou não tem para andar” - desabafou João Esteves.
Mas ainda bem que temos estes dias de festejo para encontrarmos os nossos
amigos e olha que eles não estão melhor que nós. O que me dá pena é perdermos
as tradições de outrora: as sementeiras, ceifas, desfolhadas e vindimas, era
aqui que nos reuníamos. E que festa! Mesmo sendo um dia de trabalho - dizia
Alberto Galhardo. - Outros tempos, outros tempos! - Concluía João Esteves.
Mesmo assim venho satisfeito - retomava a conversa Alberto Galhardo. A
feira não estava assim má. A banda da música está boa, tem boas aquisições,
embora a maioria seja da terra, o reportório foi bem escolhido, a procissão bem
arranjada, só não gostei da feira cavalar, embora admire o esforço feito para
não acabar com o festival equestre. - Concordo contigo - interrompeu João
Esteves e digo mais, oxalá que para o ano tenhamos a mesma conversa. - Oxalá
que sim, oxalá que sim. Que o meu Russo faça companhia ao teu cavalo, que de
certeza já vai farto da carroça, da conversa e do nosso peso - rematou Alberto
Galhardo.
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