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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Isto não é o Bangladesh. É bem pior: é à vontade:

Há dias em que a política portuguesa parece escrita por um argumentista com ressaca, daqueles que reciclam piadas velhas e ainda acham que inventaram a roda.
Vem isto a propósito da decisão do Tribunal Constitucional que concluiu que algumas normas da Lei da Nacionalidade são inconstitucionais. E, como manda o guião do teatro político, o Chega reagiu com a indignação de quem descobriu que o Sol nasce a Leste: “mudem a Constituição!”. Pronto. Problema resolvido. Se a realidade não encaixa, parte-se a realidade e pinta-se de vermelho para a fazer parecer mais dramática.
É de uma beleza pedagógica que só um sketch cómico poderia rivalizar. O mesmo partido que berra que “a lei é para cumprir”, que “isto não é o Bangladesh” e que há gente que vive acima das regras, descobre subitamente que existem leis… que atrapalham. E o que se faz quando a lei atrapalha? Não se cumpre. Altera-se. Não porque esteja errada, atenção, mas porque não dá jeito. A Constituição, afinal, não é bem uma lei. É um obstáculo burocrático, um detalhe técnico, uma ervilha no sapato do herói indignado do Instagram.
Vamos simplificar: a Constituição é a lei das leis, aquela coisa aborrecida que existe para impedir que maiorias inflamadas por slogans, tweets e memes decidam que direitos fundamentais são negociáveis como tapetes de stand automóvel. O Tribunal Constitucional não “mandou abaixo” a vontade popular; limitou-se a fazer o trabalho que ninguém quer: ler, interpretar, pensar. Escandaloso, eu sei.
Mas para os senhores do Chega, isto é um golpe de Estado com toga. Juízes! De toga! A ler artigos! A citar a proteção da confiança, a irretroatividade, o Estado de direito! Horrível! Se uma lei foi votada no Parlamento, devia valer automaticamente, mesmo que atropelasse a Constituição, o bom senso e as leis da física. Caso contrário, para que serve gritar “isto é uma vergonha” nas redes sociais?
Eles acham que a Constituição é sagrada quando se quer atacar minorias, imigrantes ou “subsidiodependentes”, mas torna-se irritante quando protege direitos ou impede castigos automáticos. O problema nunca é a lei mal feita, nem a pressa legislativa, nem o desrespeito por princípios básicos. O problema é sempre a Constituição, os juízes, ou alguém que saiba ler sem gritar.
A solução mágica é alterar a Constituição como se fosse um regulamento de condomínio: sem debates, consensos ou consequências. A Constituição não foi desenhada para ser obediente; foi desenhada para ser resistente. Quem se queixa disso está, no fundo, a queixar-se do Estado de direito.
A ironia suprema é o partido que acusa os outros de não cumprirem a lei a reagir a um acórdão do Tribunal Constitucional propondo… não cumprir a lei das leis. Cumprir a lei é muito importante, desde que seja a lei que eu escrevi, do modo que eu quero, com efeitos que imagino e sem juízes a estragar o espetáculo.
Podia haver um momento de honestidade intelectual, mas isso é pedir demais: admitir que a Constituição existe para travar excessos, que o Tribunal Constitucional não é um inimigo do povo, mas um travão de emergência, e que, num Estado de direito, quando uma lei é considerada inconstitucional, o problema não é a Constituição ser exigente demais. O problema é que a lei foi escrita como se fosse um folheto de marketing com slogans e fotos bonitas. Mas isso já não dá jeito em campanha. E sem jeito, muda-se a Constituição. Afinal, a lei é para cumprir… excepto quando não é.
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O Comentador de Situações 

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