Por que será que, neste dia que assinalam os dez anos sobre a noite em que José Sócrates foi preso à chegada ao aeroporto de Lisboa, hesitei em escrever sobre o assunto? Por que motivo, ao ensaiar o início de um simples post, dou por mim a escolher cuidadosamente as palavras, como se estivesse a pisar um terreno imensamente delicado?
Naquela noite de 2014, ao saber da prisão de José Sócrates, isso perturbou-me. E, no entanto, a minha relação com ele nunca havia sido íntima.
Tínhamos estado juntos nos dois governos de António Guterres. Partilhámos muitas reuniões de secretários de Estado, vi com naturalidade a sua chegada a ministro. Era uma estrela ascendente dentro do executivo, tinha claramente a confiança de Guterres, assisti a excelentes prestações suas em conselhos de ministros. Aqui entre nós, tinha um estilo de expressão às vezes um tanto irritante, algo auto-convencido, mas a qualidade da sua ação como que absolvia esses vícios de forma. Em todas as poucas interações diretas que, nesse tempo de governo, tive com ele, foi sempre de uma extrema gentileza e atenção. Éramos amigos? Tínhamos uma relação super-cordial, o que, nesses meios políticos, se pode identificar à amizade.
Quando saí do governo e regressei à minha carreira profissional, deixámos de nos ver. Só nos reencontrámos no Brasil, em 2005, já ele era primeiro-ministro. Nesse intervalo de cinco anos, Sócrates tinha feito o percurso que o levou a S. Bento. Constatei que era muito eficaz na defesa dos dossiês de Estado, senti-o atento àquilo que o embaixador de Portugal, que eu então era por ali, lhe assinalava como prioritário. Estabeleceu uma relação pessoal imediata com Lula, de que a ação da embaixada bastante beneficiou. Lembro-me da sua obstinação em trazer a Embraer para Portugal e o empenho que colocou na concretização desse objetivo.
Um dia, sem que alguma vez entre nós disso tivéssemos falado, fui transferido de Brasília para Paris, o meu último posto diplomático. Notei, desde a minha chegada. a forte simpatia que Sarkozy dedicava a Sócrates. Passava, entre os dois, uma corrente de energia, como pude constatar em reuniões em "petit comité", durante as suas visitas de trabalho a Paris.
Por esses tempos, em 2009 e 2010, José Sócrates fez-me vários e honrosos convites, que consegui recusar. Já no Brasil, no início do seu primeiro governo, me transmitira um desafio. Persisti sempre na minha carreira e não estou arrependido.
Depois, veio a crise. Sócrates caiu, em eleições. Alguém me preveniu que ele tencionava ir viver para Paris, pelo que não fiquei surpreendido quando um dia me telefonou. Embora o seu afirmado objetivo fosse proporcionar um melhor tempo académico a um filho, disse-me que tinha intenção de aproveitar o tempo em Paris para estudar "filosofia política". Perguntou-me se eu sabia de algum curso que ele pudesse seguir. Disse-lhe: "Só se eu procurar no Google!". E, brincando: "O teu governo tirou-me a conselheira cultural, que era a única pessoa na embaixada que sabia dessas coisas..." Apresentei-lhe um amigo pessoal, o professor luso-francês Pierre Léglise-Costa, pensando que talvez ele o pudesse informar. No dia seguinte a esse encontro, parti para Portugal, para um mês de férias. Dias depois do meu regresso, Sócrates telefonou-me: "Entrei em Sciences-Po". Felicitei-o e senti-o feliz.
No ano e meio que se seguiu, encontrámo-nos, por Paris, uma meia dúzia de vezes, duas delas com um Mário Soares de passagem e que por ele manifestava um grande apreço. José Sócrates, por qualquer razão, nunca aceitou os vários convites que lhe formulei para ir a eventos na embaixada, onde eu teria tido muito gosto em acolhê-lo. Nem pôde ir à minha festa de despedida, mas telefonou depois a dar-me um abraço.
Depois do meu regresso a Portugal, em 2013, estivemos juntos no lançamento de um seu livro, em Vila Real. Creio que foi a última vez que nos cruzámos. Mas, claro, tenho sabido de José Sócrates e acompanhado as suas atribulações, tal como acontece com os leitores deste texto, o qual, afinal, não foi assim tão dificil de escrever.
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