1.
Vimo-lo há uns dias a festejar mais um título do FC. Porto, mas também o poderíamos ter visto na Procissão das Velas, em Fátima ou na Queima das Fitas.
Poucos portugueses não conhecerão o “Emplastro”.
Mas poucos serão aqueles que conhecem o Fernando Jorge.
Rimos, abanamos a cabeça, questionamos um pormenor ou outro, antecipamos onde estará a seguir.
O “Emplastro” não tem mistérios.
2.
Mas do Fernando Jorge muito pouco ou nada sabemos.
Nasceu no dia 25 de Abril.
E logo se viu que talvez não viesse a ser como as outras crianças.
No dia em que completou três anos, aconteceu o mesmo num outro 25 de Abril. Também logo se viu que aquele dia não seria igual aos outros dias.
Nasceu numa família demasiadamente pobre da Praia da Madalena, no Porto.
Ficou muito cedo órfão, mas uma avó conseguiu durante alguns anos ser o seu bocadinho de rede, o seu bocadinho de chão.
Foi trabalhar com pouco mais de dez anos para uma fábrica onde era valorizada a sua força de braços pouco ou nada normal para uma criança. Os seus bracitos levantavam máquinas como se tivesse o poder de carrego de um homem.
E o Fernando, a quem chamavam “Pintas” por causa de um sinal de nascença, era mais do que criança – ele era uma criança eterna.
Ingénuo.
Generoso.
Amigo.
O Fernando entregava o dinheiro à avó – o dinheiro da fábrica e das esmolas que pedia todos os fins de tarde na Igreja dos Congregados, na Praça de Almeida Garrett, no centro do Porto.
3.
Estou a escrever este postal para si que julga conhecer o “Emplastro”.
Quero dizer-lhe que o Fernando nunca aprendeu a ler ou a escrever, mas na CERCI dizia-se que sabia cortar, colar e pintar.
E sabia também sorrir e entregar-se aos outros sem perceber o modo como os outros o olhavam. Nuns casos abraçavam-no sem nada em troca, abraços genuínos de gente boa. Noutros, abraçavam-no para gozar o prato.
Chegaram a levá-lo para viagens de finalistas em Espanha, chegaram a enchê-lo de moedas para dançasse, para que pousasse para selfies alarves, para que fosse o monstro num circo de aberrações do princípio do século XX.
O Fernando deixa-se ir.
Gosta de ser gostado.
Para ele todos o adoram, gostam de si como ele gostou daquele passarinho que um dia tentou apanhar num poste de alta tensão na estação das Devesas, em Gaia. Muitos dias no hospital, uma queimadura importante na zona lombar e uma pergunta logo que saiu dos cuidados intensivos.
“E o passarinho?”
4.
Tem página na Wikipédia.
Costuma dormir nas redondezas do aeroporto Sá Carneiro.
Uma noite, depois de ter perdido a boleia da claque do FC. Porto que o levaria de regresso ao lugar onde dorme, o Fernando bateu à porta do Posto da GNR de Barcelos para ali poder dormir.
Foi um fartote, mas ao “Emplastro” não era possível dizer que não. Arranjaram-lhe cobertores para que a cela, por uma vez, fosse usada por uma criança (ainda por cima) eterna.
5.
O Fernando acredita em Deus.
Sempre que pode vai a Fátima ou entra nas igrejas onde o ajudam com moedas e conselhos.
Numa missa da RTP apareceu a ultrapassar toda a gente para tomar a hóstia em primeiro lugar, lembro-me de ter pensado que se Deus existir talvez aquela imagem seja simbólica.
Afinal, o Fernando, nascido num dia 25 de Abril…
… o Fernando Jorge que guarda num saco de plástico papelada que não mostra a ninguém…
… talvez seja até mais do que um ser humano.
Talvez seja uma criança eterna que existe para mostrar ao mundo o quanto olhamos sem ver, o quanto conhecemos sem saber, o quanto somos insensíveis ao que está para lá da superfície.
LO
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