Voltou o julgamento de Sócrates, voltou o festival de hipocrisia, sonsice e pura perfídia na claque e clique dos acusadores. Os acusadores estão dentro e fora do tribunal, dominam o ecossistema mediático. Não me é possível dar conta de todos os episódios, limito-me aos favoritos.
Há dois meses, Pacheco Pereira assinalou o início do julgamento com esta peça: Os efeitos perversos do processo de Sócrates e outros “marqueses”. A ocasião era solene, simbolicamente muito importante para quem disse publicamente de Sócrates o que o Pacheco disse durante tantos anos. Sendo dos mais influentes comentadores políticos na terrinha, alguém que se apresenta como historiador, personagem que já exerceu funções políticas de relevo, seria natural que pudesse ter aproveitado para fazer um balanço do que ficámos a saber desde a detenção no aeroporto, em 2014, e o calendário em que estamos, 2025. Porque ficámos a saber muito, sendo que o mais grave nesse conhecimento diz respeito não a respostas mas a perguntas, questões. O tribunal onde agora se tenta fazer justiça dará uma qualquer resposta inequívoca, que fará o seu curso na Justiça e na História. Mas para quem, do alto do enorme privilégio de ser uma vedeta do comentariado, sente a pulsão para se posicionar acerca da inocência ou culpabilidade de Sócrates, há nesta fase questões cruciais que definem o carácter de quem as coloca e de quem não as coloca. São, obviamente, demasiadas para o gasto neste pardieiro.
Seguem os exemplos a que dou maior relevância:
— Se Sócrates for condenado por corrupção, quais deverão ser as consequências para todas as pessoas que participaram nos seus Governos, parte das quais continuou a participar nos Governos de Costa e pertencem ao partido? Quais deverão ser as consequências para o PS? Se Sócrates for absolvido, quais deverão ser as consequências para o Ministério Público? E para as leis portuguesas?
— O facto de a Operação Marquês apresentar as características típicas de ser um processo político, ainda antes do espectáculo montado para a detenção de Sócrates e dos abusos e violências que se seguiram nestes mais de 10 anos, não tem importância? O lawfare ululante é para esconder debaixo do tapete?
— Nas 4000 páginas de despacho acusatório, 53 000 de investigação, 77 000 de documentação anexa, 8 000 de transcrições de escutas telefónicas, nos 13,5 milhões de ficheiros informáticos, nas 103 horas de vídeos de interrogatórios e 322 horas de depoimentos áudio de testemunhas, qual a informação que se pode extrair acerca de um qualquer acto de corrupção com governantes, ou que fosse com meros cidadãos — um só? Um, apenas um à escolha.
Nada disto aparece no texto do Pacheco. O artigo começa e acaba a dizer que Sócrates é culpado. De quê? Não fazemos ideia. O Pacheco nada de nada diz sobre a matéria da acusação, recusa pronunciar-se para não ter de tomar partido, para não dar razão a Sócrates seja no que for. Tenho a certeza de que não leu nem uma página do processo, daí estar sempre a repetir a patética cassete de um documento rasurado no qual tropeçou quando era deputado. Esse tempo para si traumático, em que era toureado no parlamento e em que ajudou a Dra. Manuela a fazer uma campanha caricata para as legislativas de 2009, não passou. Sócrates é o único culpado do seu sofrimento, da sua humilhação.
O miolo do artigo consiste na defesa da presunção de inocência e dos direitos da defesa, de forma convincente como é seu apanágio. Um caso paradigmático de dissonância cognitiva. Esperar que o Pacheco se dê conta da contradição será desconhecer que os moralistas soberbos são tartufos encardidos.
3 Setembro 2025 às 9:23 por Valupi
Do blogue Aspirina B
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