(António Gil, in Substack.com, 15/05/2025, Revisão da Estátua)

Os media e políticos ocidentais são indiferentes à realidade: eles nunca viveram lá.
No artigo titulado O Penultimato – ver aqui -, escrevi meio a brincar que a Rússia devia enviar a dupla Vovan e Lexus a Istambul para negociar com Zelensky. Seria uma negociação entre colegas comediantes. A dupla concordaria com todas as exigências do ucraniano, assinaria a rendição da Rússia enquanto o exército de seu país continuava a avançar no terreno como se não houvesse amanhã.
Mais tarde, reflectindo sobre isso, a ideia não me pareceu tão disparatada assim, considerando os precedentes: regra geral o Ocidente colectivo nunca cumpriu nada do que assinou, logo talvez tenha chegado a altura de lhe dar a provar um pouco do seu remédio. Mas houve ainda outro aspecto que me fez pensar que tal solução absurda poderia responder às angústias dos líderes ocidentais.
Trata-se do seguinte: regra geral, tudo o que importa deste lado onde o sol se põe é o controlo da narrativa. De há alguns anos a esta parte, o arremedo de líderes que temos preocupa-se quase nada com o que é, e tudo com o que parece. Se a Rússia admitisse a derrota, mesmo comportando-se no terreno como vencedora, os media ocidentais exultariam com um punhado de assinaturas russas num documento surreal e inútil.
Há algum tempo ando a escrever um livro sobre um manicómio um pouco diferente dos outros. Nesse hospício, a filosofia seguida é nunca contrariar o paciente. Se ele se julga Napoleão, ele deve ser tratado como tal. Se ela acredita ser a Lady Gaga, há que dar-lhe um palco. Todo o espaço desse manicómio, desde os quartos até aos jardins, são lugares onde a realidade foi decretada como nula.
Entretanto, os hóspedes vão sendo espoliados de suas fortunas, é claro. Porque sim, tratam-se de pessoas com posses e fazer-lhes todas as vontades tem um preço muito alto. Assim que toda a sua fortuna é sugada pela instituição, os pacientes são descartados de formas variadas que podem ir do abandono ao assassinato.
Claro que a Rússia não pode actuar – como eu a brincar sugeri -, porque mesmo tendo em conta que foi várias vezes enganada pelos seus inimigos, ainda tem a sua credibilidade a defender junto do Sul Global, que é neste momento o foco de seus esforços para a construção de um mundo multi-polar.
Mas isso não significa que os líderes do Ocidente colectivo não continuem a preocupar-se sobretudo com a narrativa e isso será feito mesmo sem a farsa de um acordo para não cumprir. Mesmo quando for ainda mais evidente do que é hoje que todo o sangue (ucraniano) e o tesouro (ocidental) investidos na Ucrânia não impediram a vitória russa, nenhum líder dirá que foi uma aposta errada.
Assim, as “ideias” para justificarem o que não tem justificação possível de resto já andam aí, só não foram ainda marteladas exaustivamente para convencer as populações. Eles dirão, então, o que já vão sugerindo:
1- O sacrifício da Ucrânia salvou a Europa pois Putin ficou sem forças para atacar outros países. (a nova versão neocom de combatêmos-los lá para não termos de os combater aqui.
2- Enquanto a Ucrânia lutava, a Europa rearmava-se, portanto ganhámos tempo.
3- Permanecemos unidos e estamos prontos para qualquer eventual nova ofensiva russa.
E pouco importará que a Rússia nunca tenha tipo intenção de invadir a Europa, que o rearmamento tenha sido o previsível fiasco ou que as brechas entre os diversos países da União Europeia se tenham agravado por causa dessa guerra. Eles não se ocupam mais da realidade: tudo o que sabem fazer é tentar gerir as percepções.
Fonte aqui.
Do blogue Estátua de Sal
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