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terça-feira, 1 de abril de 2025

Vi a entrevista de Boaventura Sousa Santos que me merece vários comentários, longe dos apedrejamentos costumeiros:

O primeiro é a gravidade do que foi ali dito - destruído nos media e na academia, do qual foi afastado de vários lugares, disse que nunca viu um único documento ou prova contra si. Isto em qualquer Estado de Direito basilar era intolerável. Os traços autoritários dos Estados vêm com pés de lã, nos EUA estas políticas começaram por alegadamente proteger as vítimas (mulheres, negros) e hoje servem para despedir mulheres e negros, homens e brancos, desde que se oponham a Trump. A suspensão dos direitos nunca pode ser defendida por gente de esquerda. Porque acaba a voltar-se contra as pessoas de esquerda. Abre-se a caixa da pandora da inquisição.

A ténue crítica de Boaventura aos media. Os mesmos jornais que têm a agenda do Metoo e nunca publicaram nada sobre dezenas de casos de queixas de assédio a professores de direita e de extrema direita - alguns deles com processos disciplinares concluídos.

E aqui creio que Boaventura não compreendeu inteiramente o que se passou. A sua posição face à Ucrânia não é determinante.

Boaventura é um dos poucos intelectuais deste país que pensa realmente (e eu discordo das suas teses e sempre discordei, nunca o "bajulei" e nunca deixei de o criticar), mas as suas teses não são estruturalmente incómodas. Por isso o seu projecto Alice, que citou amplamente, foi acarinhado pela UE porque defende a tese de que é possível regular o capitalismo na Europa assegurando direitos. O mesmo para as teses de epistemologia do sul - teses "campistas", que se opõe à noção de luta de classes substituindo-a por uma noção de luta norte versus sul, homens versus mulheres, negros versus brancos.

Creio que a verdadeira razão é outra. A Universidade portuguesa mergulhou na Nova Gestão Pública. É preciso afastar os catedráticos, para substituir as direcções das universidades por gestores.

Boaventura é o alvo perfeito: o catedrático emérito de esquerda, coordenador de um projecto milionário, abatido, em directo. Se ele foi, os outros que tenham medo! Foi essa a mediatização. O último reduto da autonomia universitária está na figura de catedrático, que por conservadorismo resistia ao produtivismo gestionário. Com os conselhos gerais das universidades dominados por externos academia, e com as faculdades a mudar estatutos para que não catedráticos sejam eleitos, em breve teremos professores-gestores auxiliares a mandar nos professores catedráticos. Foi o que aconteceu nos hospitais, onde enfermeiros-gestores mandam em médicos; e irá acontecer também nos advogados, com a mudança do estatuto de carreira imposta pelo PRR. A ideia é acabar com a auto-regulação do trabalho.

Não vou perder tempo a explicar que o catedrático é uma figura fundamental, pior que a Universidade conservadora medieval é a universidade gestionária, liderada por métricas e plataformas, geridas por gestores-professores, que são autênticos sociopatas. E em que claro se criarão - e já criaram - condições para que o assédio sexual e moral seja muito pior do que no velho sistema medieval.

A isto juntam-se as avaliações da FCT, que divide o dinheiro pelos laboratórios de humanidades - abatendo o CES sobra mais para os concorrentes.

E agora a parte mais importante da entrevista. O erro fulcral. Boaventura disse que estas mulheres não estiverem à altura de entrevistas, textos, artigos e contratos e por isso nunca conseguiram um lugar.

Tenho sincero desprezo pelos métodos inquisitoriais destas mulheres mas o que não falta neste país são milhares de mulheres e homens doutorados que concorrem aos projectos FCT e ganharam, escreverem bons artigos, fazem investigação , são excelentes docentes e...não têm lugar. E é isso que cria esta pântano - não é que "não estiveram à altura". É que 75% do trabalho universitário é feito por precários. A quem prometem que "talvez" se ele fizer mais um concurso vai ter um lugar. Ora, estamos a falar de doutorados. Quem é doutorado deve ter um emprego seguro, para a vida, o doutoramento é a prova máxima.

E o que tem acontecido é que os poucos lugares são distribuídos de forma injusta. E serão sempre, porque todos os doutorados estão em pé de igualdade, por isso inventam-se critérios alegadamente justos mas arbitrários. Os defensores dos precários, muitos vezes, usam a cenoura de que "talvez venha um lugar para ti", para ter os seus votos na luta dentro das instituições e depois negoceiam lugares para os seus apoiantes, esperando que os outros, cansados, emigrem. É este sistema que gera o assédio, que gera a denúncia caluniosa, e que gera todo o mal estar nas universidades.

Lamento não ter visto Boaventura dizer isso mesmo - acusar o neoliberalismo, mas dizer que quem trabalha bem teve lugar, é uma contradição. A Universidade portuguesa transborda de pessoas que trabalham e não têm lugar. O lugar é dado aos obedientes, e como não há lugar para todos os obedientes, sobram também os ressentidos, e as falsas denúncias, e claro os assediadores, que perseguem quem se lhes opõe.

A única forma de combater isto é defender lugar para todos os doutorados e auto gestão democrática. Onde se criam relações de confiança em que pode haver abraços, e ainda bem, sim ainda bem que nos abraçamos! Porque há confiança.

É preciso recusar-se participar na distribuição de lugares a uns, deixando outros de fora. Mas isso chama-se greve. Nunca foi feito. É preciso uma luta coletiva que recusa-se a fazer parte do jogo pernicioso. Ou fazemos como um dia fizeram os estivadores, até serem despedidos na pandemia - ou há lugares para todos ou ninguém trabalha - ou então vamos assistindo a directores de institutos e instituições distribuir lugares para 25% deixando os outros 75% com a cenoura "se publicares muito, se fores a muitos congressos, vais ter lugar...".

Tudo correu mal neste episódio de "vigiar e punir" e que uniu a esquerda pós moderna e a direita "atira a pedra ao Boaventura". Depois deste episódio mais homens vão ter medo de galantear - sobra no fim apenas o Tinder e uma depressão por falta de afectos, e um contrato formal de consentimento jurídico. E muito mais mulheres - vítimas de assédio que apresentam provas e queixas nos lugares correctos, tribunais -vão ter medo de o fazer porque o que estas mulheres fizeram foi mais um contributo para descredibilizar todas as mulheres. Boaventura podia ter aproveitado esta entrevista para defender um sistema universitário com carreiras para todos, justas. E por isso, liberdade científica. O que fez foi defender a lei do mais forte (alegadamente mérito) nos contratos.

Cabe-me - por fim - dizer que sou a favor do piropo; que acho o assédio moral e sexual deplorável, que sou contra a denuncia anónima, que acho que as custas judiciais devem ser eliminadas, e deve haver advogados bem pagos pelo público para defender as mulheres; que piropo, galanteio, assédio e violação são TRÊS COISAS muito DIFERENTES. E que a notoriedade que se dá a tudo isto na academia, e o desprezo pelas mulheres violadas a sair do seu trabalho por turnos na periferia das cidades, só demonstram a total falta de noção da "bolha académica e mediática".

Raquel Varela

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