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sábado, 18 de janeiro de 2025

Cofinados – V:

«The ideal subject of totalitarian rule is not the convinced Nazi or the convinced Communist, but people for whom the distinction between fact and fiction, true and false, no longer exists»

Hannah Arendt

Em 1977, três psicólogos — Lynn Hasher, David Goldstein e Thomas Toppino — publicaram um estudo onde se descobriu que a repetição de uma informação leva a que aumente a probabilidade de ser considerada verdadeira, independentemente da sua factualidade ou justificação. Consagrava-se, na literatura científica, o conceito de “efeito de ilusão de verdade”, onde a exposição a uma dada informação cria familiaridade com a mesma e, acto contínuo, confiança na sua plausibilidade. É a lógica dos fenómenos de aculturação e propaganda, por exemplo, e opera em conexão com outros processos cognitivos e sociais que reforçam o seu efeito, como o viés de confirmação e o efeito manada, entre muitos outros. Ou seja, somos animais sociais e temos pavor genético ao ostracismo, pelo que, desde a mais tenra infância, procuramos estar em sintonia constante com a identidade dos grupos a que pertencemos. A cognição serve os interesses da genitália, estes o da reprodução, para citar um bacano cujo nome me escapa e largar uma caricatura. Pertencer a minorias, ainda mais ser rebelde, tem custos que podem ser muito elevados e até fatais. Isto é do conhecimento comum, todos concordam. Saltemos para a Portela.

Podemos imaginar que num universo paralelo, bué parecido com este, existe um José Sócrates que, num 21 de Novembro lá deles, à noitinha, aterrou numa Lisboa em tudo igual à nossa. Mas com esta diferença: não teve elementos da Judiciária à sua espera. Pelo que pôde ir para casa, sem cobertura mediática, e no dia seguinte foi apresentar-se no Ministério Público para prestar declarações, ainda sem notícia de tal na comunicação social. Podemos continuar a imaginar que ao longo desse dia chegava ao conhecimento público que Sócrates estava a ser interrogado, embora não se soubesse porquê. Depois, posto que tinha ido voluntariamente colaborar com as autoridades, o juiz paralelo considerava não haver perigo de fuga, nem razão para prisão preventiva. Podia sair em liberdade, e um senhor com um notável bigode viria explicar quais eram as suspeitas na berlinda, e que o caso iria ser investigado de forma rápida e implacável dada a importância social e política do mesmo. Por sua vez, o advogado paralelo de Sócrates apresentaria a versão do seu cliente e manifestava confiança na Justiça. Neste outro universo, a opinião pública continuaria a ficar chocada, uns, e em êxtase, os restantes. Mas não teria sido feito um julgamento instantâneo nos meios de comunicação social ao serviço dos procuradores e da PGR, nem se teria instigado um linchamento de rua febril.

No nosso universo houve a decisão de politizar o caso desde o início. Essa decisão reunia os interesses dos procuradores da Operação Marquês, os interesses de Joana Marques Vidal, os interesses de Paula Teixeira da Cruz, os interesses de Passos Coelho, os interesses de Cavaco Silva e os interesses do Alex, uma juliana pérfida ocupando o topo da hierarquia do Estado em sinergia. Por isso foi montado um espectáculo inaudito na sociedade portuguesa, onde se convocaram os jornalistas para encherem o País com as imagens da detenção humilhante de quem entrava em Portugal, não de quem tentava sair. Ao mesmo tempo, muniram esses mesmos jornalistas de balelas dadas como verdades blindadas pela autoridade do Ministério Público. A intenção foi a de anular qualquer vestígio de presunção de inocência, apresentando a detenção e posterior prisão como o resultado inevitável das provas já recolhidas pelas autoridades numa extensa e profunda investigação. A cobertura mediática que se seguiu, com o editorialismo a colocar a carne toda no assador da agenda política em andamento, instituiu cognitiva e sociologicamente ser impossível que Sócrates não fosse culpado de crimes de corrupção. As dinâmicas do ódio político e do ressentimento popular, o populismo larvar desde 2008 a ser alimentado pelo PSD e Cavaco, geraram um frenesim selvático que também era politicamente desejado como factor de pressão sobre os eventuais juízes que viessem a lidar com as acções da defesa de Sócrates.

A coisa podia ainda ficar pior para o ex-primeiro-ministro? Podia e ficou. A dimensão de responsabilização moral do caso é incontornável, mesmo na hipótese de não existir crime de corrupção, tendo provocado danos graves a terceiros com protagonismo e influência na sociedade portuguesa, assim como exigiu de António Costa uma resposta que protegesse o Partido Socialista nessa situação de original e altíssimo risco eleitoral totalmente imprevisível quanto ao seu desfecho. Isso, juntamente com a avassaladora operação política e mediática em curso, impediu que na área socialista se conseguisse separar o que era moral do que era judicial, na prática levando a uma cumplicidade com os abusos e crimes na Justiça e com o linchamento mediático sistemático. Sim, Sócrates teve um punhado de visitas em Évora, houve amigos que não o abandonaram, e até Soares exibiu um último fogacho como animal político. Mas Costa ao lá ir e lavar as mãos selou o divórcio do PS, e mais ninguém quis arriscar ficar contaminado por uma pessoa que, mesmo que viesse daí a anos a ser dada como inocente, entretanto não merecia apostas às cegas nem sacrifícios temerários. A cicuta tinha de ser tragada até à última gota.

10 anos já se foram. Sócrates continua a reclamar-se inocente, o editorialismo converteu-se à necessidade de se castigar o diabo mesmo que não haja corrupção, os caluniadores profissionais continuam a explorar o filão, e a Justiça está afundada em incompetências e crimes que o regime aceita e não tenciona sanear. Não admira, e deve-se ter compaixão, que o cidadão comum repita calúnias e não tenha nem literacia nem motivação para entender o que está realmente em causa na Operação Marquês. Que é isto: se não há provas de corrupção, se nunca existiram, se prenderam para investigar, se gastaram milhões de euros a vasculhar tudo o que puderam apanhar na devassa da privacidade dos arguidos, então o que está realmente em julgamento na Operação Marquês, neste tempo em que o poder é supremo na esfera da Justiça, é o Estado de direito democrático.

A condenação do jornal Correio da Manhã e cinco jornalistas pela violência com que atacaram a jornalista Fernanda Câncio faz parte desta história. A espiral do silêncio deixou-a abandonada quando as calúnias se abateram sobre ela, e depois quando foi ela a abater os caluniadores. E se não admira que vedetas hipócritas e soberbas do comentariado como Ana Gomes e Pacheco Pereira, os quais se vendem como reserva moral da Nação, tivessem omitido nas suas prédicas a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, já constatar a mesma ausência de referência, perante as suas audiências televisivas, em figuras como Daniel Oliveira, Pedro Marques Lopes e, especialmente, Paulo Pedroso, foi para mim descoroçoante. É que dos directores de jornais e estações de TV, assim como dos dirigentes partidários, nada há a esperar quanto à defesa ideológica e ética da cidade. Pelo que tal papel está entregue a raríssimos protagonistas no espaço público. Se nem eles ousam cumprir-se na parrésia de se colocarem ao lado da vítima dos poderosíssimos algozes, para não serem pintados como “defensores de Sócrates” pela pulharia, isso é mais uma evidência do triunfo obtido por quem fez da Operação Marquês um julgamento de excepção.

 por Valupi

Do blogue Aspirina B

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