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terça-feira, 21 de maio de 2024

Aguiar Branco é bom a guiar broncos:

Como é que a esquerda não percebe que é beneficiária de um entendimento amplo da liberdade de expressão?
Ventura, até na qualidade de preconceituoso, é um mandrião. "Estão a ver aquele povo que, por toda a Europa, montou estabelecimentos onde se vendem saborosas e económicas sandes que ficam abertos durante a madrugada toda para receber bêbedos desenfreados? Gostam pouco de trabalhar." Não tem correspondência com a realidade. Qualquer entusiasta de xenofobias lhe daria nota negativa. O Presidente da Assembleia da República percebeu que aquelas declarações merecem apenas desdém ou troça e conduziu Ventura para longe da oportunidade de vitimização. Fez bem. Aguiar Branco é bom a guiar broncos.
Aguiar Branco podia ter feito uma advertência pedagógica? Sim. Mas não é essa a questão divisiva. Advertir não é o mesmo do que retirar a palavra ou censurar preventivamente. Quando Alexandra Leitão pergunta “se uma determinada bancada disser que determinada raça ou que determinada etnia é mais burra, mais preguiçosa e menos digna, também pode?” não está a exigir uma advertência pedagógica, mas que o PAR assuma o poder de desenhar arbitrariamente as fronteiras do discurso admissível. Um poder evidentemente excessivo para um cargo cujo desempenho historicamente se cinge à articulação recorrente das palavras “pode concluir, senhor deputado”.
A palavra “poder” é decisiva. No parlamento, Alexandra Leitão disse “na minha opinião, não pode”, com toda a convicção. No seu programa de comentário de domingo, a líder parlamentar do PS teve um princípio de incerteza, clarificando que só pretendia uma advertência. Tarde demais. O “não, não pode” colou e o Instagram já abarrotava de exibições de indignação vindas de todas aquelas figuras públicas do país que só expressam opiniões políticas quando há uma tentadora hipótese de se posicionarem como Boas Pessoas.
Uma das críticas a Aguiar Branco focou-se no facto de, não tendo punido Ventura pelas declarações sobre os turcos, ter pedido, no início da legislatura, que se evitasse o tratamento por “tu” ou “você”. Podemos discutir a pertinência da imposição de etiqueta na AR, mas não confundamos decoro com conteúdo.
"Vossa Excelência perdoar-me-á, mas o meu entender é o de que os israelitas são cúmplices de um genocídio" é uma afirmação simultaneamente decorosa e politicamente incorrecta, ao passo que "eu acho que os ex-agentes da PIDE deviam era mamar na quinta pata do cavalo" é uma afirmação politicamente correcta que não é lá muito bem educada. É saudável que o PAR zele pela educação, é perigoso que policie os deputados quanto à conformidade com o espectro das ideias aceitáveis.
Se, na vigência de um massacre em Gaza, a proibição de manifestações pró-Palestina e as tentativas de silenciamento de apoiantes da causa sob a justificação de anti-semitismo não fazem com que a esquerda repense a suas tendências quanto à liberdade de expressão, nada fará. Os partidos à esquerda do PS têm um vigésimo dos deputados na Assembleia; prevê-se que haja uma brusca viragem à direita no Parlamento Europeu; Donald Trump, mesmo depois de uma extremamente eficaz expulsão do Twitter, é capaz de voltar à Casa Branca. Tendo cada vez menos voz nas instituições e sabendo que os limites ao discurso político prejudicam sobretudo quem tem ideias inconformes com o status quo, como é que a esquerda não percebe que é beneficiária de um entendimento amplo da liberdade de expressão?
As reações às posições de pessoas de esquerda que demonstraram essa preocupação indicam precisamente o caminho oposto. Manifestam-se os ímpetos fratricidas do costume, motivados por uma incontrolável ânsia de mostrar virtude aliada a uma natureza sicofântica. Dispara-se a palavra “normalização” - aprendida recentemente num ATL - e rebate-se todos os argumentos através de uma infografia que sintetiza o paradoxo da tolerância de Karl Popper, provavelmente retirada do livro “Filosofia para Totós”. Caso não haja disponibilidade do alegado apóstata para uma penitente sessão pública de autocrítica, finalmente vota-se em Assembleia Geral a sua expulsão da comunidade de Boas Pessoas™. Está plantado, logo se vê como é que mais tarde encontraremos este fruto. No meu entender, podre.

Humorista

No Express

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