Como é que a esquerda não percebe que é beneficiária de um entendimento amplo da liberdade de expressão?
Ventura, até na
qualidade de preconceituoso, é um mandrião. "Estão a ver aquele povo que,
por toda a Europa, montou estabelecimentos onde se vendem saborosas e
económicas sandes que ficam abertos durante a madrugada toda para receber
bêbedos desenfreados? Gostam pouco de trabalhar." Não tem correspondência
com a realidade. Qualquer entusiasta de xenofobias lhe daria nota negativa. O
Presidente da Assembleia da República percebeu que aquelas declarações merecem
apenas desdém ou troça e conduziu Ventura para longe da oportunidade de
vitimização. Fez bem. Aguiar Branco é bom a guiar broncos.
Aguiar Branco
podia ter feito uma advertência pedagógica? Sim. Mas não é essa a questão
divisiva. Advertir não é o mesmo do que retirar a palavra ou censurar
preventivamente. Quando Alexandra Leitão pergunta “se uma determinada bancada
disser que determinada raça ou que determinada etnia é mais burra, mais
preguiçosa e menos digna, também pode?” não está a exigir uma advertência
pedagógica, mas que o PAR assuma o poder de desenhar arbitrariamente as
fronteiras do discurso admissível. Um poder evidentemente excessivo para um
cargo cujo desempenho historicamente se cinge à articulação recorrente das
palavras “pode concluir, senhor deputado”.
A palavra
“poder” é decisiva. No parlamento, Alexandra Leitão disse “na minha opinião,
não pode”, com toda a convicção. No seu programa de comentário de domingo, a
líder parlamentar do PS teve um princípio de incerteza, clarificando que só
pretendia uma advertência. Tarde demais. O “não, não pode” colou e o Instagram
já abarrotava de exibições de indignação vindas de todas aquelas figuras
públicas do país que só expressam opiniões políticas quando há uma tentadora
hipótese de se posicionarem como Boas Pessoas.
Uma das
críticas a Aguiar Branco focou-se no facto de, não tendo punido Ventura pelas
declarações sobre os turcos, ter pedido, no início da legislatura, que se
evitasse o tratamento por “tu” ou “você”. Podemos discutir a pertinência da
imposição de etiqueta na AR, mas não confundamos decoro com conteúdo.
"Vossa
Excelência perdoar-me-á, mas o meu entender é o de que os israelitas são
cúmplices de um genocídio" é uma afirmação simultaneamente decorosa e
politicamente incorrecta, ao passo que "eu acho que os ex-agentes da PIDE
deviam era mamar na quinta pata do cavalo" é uma afirmação politicamente
correcta que não é lá muito bem educada. É saudável que o PAR zele pela
educação, é perigoso que policie os deputados quanto à conformidade com o
espectro das ideias aceitáveis.
Se, na vigência
de um massacre em Gaza, a proibição de manifestações pró-Palestina e as
tentativas de silenciamento de apoiantes da causa sob a justificação de
anti-semitismo não fazem com que a esquerda repense a suas tendências quanto à
liberdade de expressão, nada fará. Os partidos à esquerda do PS têm um vigésimo
dos deputados na Assembleia; prevê-se que haja uma brusca viragem à direita no
Parlamento Europeu; Donald Trump, mesmo depois de uma extremamente eficaz
expulsão do Twitter, é capaz de voltar à Casa Branca. Tendo cada vez menos voz
nas instituições e sabendo que os limites ao discurso político prejudicam
sobretudo quem tem ideias inconformes com o status quo, como é
que a esquerda não percebe que é beneficiária de um entendimento amplo da
liberdade de expressão?
As reações às
posições de pessoas de esquerda que demonstraram essa preocupação indicam
precisamente o caminho oposto. Manifestam-se os ímpetos fratricidas do costume,
motivados por uma incontrolável ânsia de mostrar virtude aliada a uma natureza
sicofântica. Dispara-se a palavra “normalização” - aprendida recentemente num
ATL - e rebate-se todos os argumentos através de uma infografia que sintetiza o
paradoxo da tolerância de Karl Popper, provavelmente retirada do livro
“Filosofia para Totós”. Caso não haja disponibilidade do alegado apóstata para
uma penitente sessão pública de autocrítica, finalmente vota-se em Assembleia
Geral a sua expulsão da comunidade de Boas Pessoas™. Está plantado, logo se vê
como é que mais tarde encontraremos este fruto. No meu entender, podre.
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