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sexta-feira, 31 de maio de 2024

A guerra e a democracia:

 (Francisco Seixas da Costa, in Blog duas ou três coisas, 30/05/2024)


Numa intervenção que fiz, há minutos, na CNN Portugal (ver aqui) chamei a atenção para alguns aspetos da guerra na Ucrânia que, em minha opinião, têm sido pouco sublinhados. 

O primeiro é dizer, com todas as letras, que a NATO não está em guerra com a Rússia. Isto não é uma technicality, é uma realidade. E, que eu saiba, também nenhum Estado membro da NATO está em guerra com a Rússia. Se estiver, tem de avisar, porque todos os restantes Estados, nesse caso, têm de avaliar se são obrigados a mostrarem-se solidários com esse eventual “estado de guerra”.

A segunda é que não é por acaso que uma entidade chamada NATO não está, enquanto instituição de defesa coletiva a dar apoio material à Ucrânia, embora o jingoísmo verbal do seu secretário-geral possa induzir o contrário. Quem o faz, à medida decidida por cada um, sob um compromisso político, são os diferentes países NATO. Esses países, tal como a NATO, também não estão em guerra com a Rússia mas, ao contrário da NATO, podem prestar ajuda material a um país estrangeiro. E há algo que também tem sido pouco dito: nenhum país NATO é aliado militar da Ucrânia.

A terceira é uma coisa que alguns hesitam em dizer alto: a Rússia, até hoje, nunca ameaçou nenhuma fronteira NATO. E não o faz porquê? Porque sabe que, se acaso o fizer, terá de enfrentar a cláusula de defesa coletiva inscrita no artigo 5° do Tratado de Washington. Ou, para sermos mais claros: teria de haver-se com os EUA.

A quarta é um mito urbano recorrente: se a Ucrânia caísse nas mãos da Rússia, toda a Europa ficaria ameaçada, nenhum país europeu ficaria isento da ameaça de invasão russa.

Trata-se de um mito, por várias razões. Desde logo porque nenhum dos pressupostos subjacentes às ambições russas sobre o território ucraniano se verifica face a qualquer outro país europeu. Mas, dando de barato que a Rússia poderia ter essa ambição escondida, gostava que alguém respondesse a esta questão: se a Rússia não é capaz de tomar Kharkiv e, muito menos, Kiev, se, ao fim de dois anos e tal, se arrasta penosamente com avanços e recuos de algumas centenas de quilómetros no território ucraniano, há alguma plausibilidade de que venha a conseguir obter, por milagre, um poder militar que lhe permita chegar a países protegidos pela cláusula de defesa coletiva da NATO?

Percebo que esta “ameaça” possa ser um argumento para a manutenção de um “estado de alerta” em todo o espaço da aliança, para um maior empenhamento de todos e de cada um em matéria de defesa e segurança, mas não nos tomem por parvos: não há um mínimo de verdade de que a Rússia seja uma real ameaça militar para o espaço NATO. O que não significa, bem entendido, que seja indiferente à NATO o destino da Ucrânia, cuja queda na tutela russa seria muito negativa para os seus interesses.

A quinta é o facto deste sucessivo “deslizar” da guerra da Ucrânia para patamares de mais profundo envolvimento do ocidente no conflito, em casos mais recentes configurando o uso de meios que pressupõem uma mais direta intervenção na guerra (hipótese de criação de uma zona de exclusão aérea, pessoal de forças armadas NATO no terreno, etc.) dever ter um escrutínio democrático a níveis nacionais.

Se alguns países NATO, com a complacência ou sob o silêncio de outros, tomarem iniciativas que, a prazo, podem vir a envolver a organização e dos seus Estados num eventual conflito, eu, como cidadão português, quero que a Constituição da República seja respeitada: se Portugal vai entrar numa guerra, se essa possibilidade existe, então a Assembleia da República tem de dar o seu aval. Portugal não pode “ir entrando” numa guerra “devagarinho”, até ao dia em que isso seja um facto, sem que as instituições da República se tenham previamente – repito, previamente – pronunciado nesse sentido. Até lá, nenhum governo português tem mandato para concordar com decisões que possam levar o país a um estado de guerra.

Gostava que se pensasse a sério nisto, fora de ambientes emocionais.

Fonte aqui.

Do blogue Estátua de Sal

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