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sexta-feira, 27 de maio de 2022

O futuro perdido da Ucrânia enquanto Estado-tampão:

Pergunta um amigo por que motivo há tanta "animosidade" a respeito da Ucrânia e por que razão não pode a Ucrânia escolher livremente o tratado de aliança militar a que aspira integrar. É evidente que as psicologizações não entram em linha quando se trata de fazer a análise dos conflitos, pois que os Estados obedecem a sobredeterminantes que não são da mesma natureza das dos indivíduos singulares. Se assim fossem sempre entendidos, tal como a abordagem realista trata de o explicar, evitar-se-iam as guerras e os Estados mais débeis, ao invés de se sentirem ameaçados, prosperariam e tirariam vantagem da sua condição. A Ucrânia muito teria a ganhar se fosse um Estado-tampão entre os membros da NATO e a Federação Russa, mas infelizmente deixou-se radicalizar numa crescente deriva extremista e, logo, de actor independente em busca do equilíbrio entre a NATO e a Rússia, passou a ser instrumento de um jogo que não podia controlar.
Para quem se interessa pelo estudo da História das relações internacionais, cedo se aperceberá que estes Estados-tampão sempre existiram e, quase sempre, foram agentes de paz e, até, de cooperação entre grandes impérios rivais. Os Estados-tampão são, pela natureza do consenso que os preservou, zonas neutrais. Contudo, sendo gerados pelo interesse de grandes potências em posição de vantagem, tendem a estar mais próximos do principal actor. Assim foi na Antiguidade pré-clássica com o Reino de Mittani, Estado-charneira entre os impérios egípcio e hitita; assim foi com os principados da Valáquia, da Transilvânia e da Moldávia, assim como com o Khanato da Crimeia, entidades vassalas da Sublime Porta, mas que auferiam de absoluta autonomia e serviam, respectivamente, de regiões-tampão entre o Império Otomano e a Hungria, a Polónia, o Sacro Império e a Rússia. No interbellum (1919-1939) houve quem defendesse a criação de uma vasta região neutral, o Intermarium, do qual fariam parte os Estados bálticos, a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria, a Roménia e a Jugoslávia, cuja massa, recursos e meios de defesa seriam suficientemente dissuasórios para os apetites alemães e soviéticos. É o caso típico de uma boa solução que não foi aplicada, pelo que no eclodir da Segunda Guerra não será alheio o fracasso do projecto.
Interessei-me pelo caso do Sião e sobre esta feliz solução que preservou a independência daquele reino que é hoje a Tailândia - o único Estado asiático que se furtou à agressão imperialista no século XIX - e desse caso feliz escrevi dois capítulos que brevemente darei a conhecer no meu Relações entre Portugal e o Sião no período Rattanakosin (1782-1939). Ao invés de ser invadido e partilhado entre a França e o Reino Unido, ao Sião estava destinado o papel que nesse momento alto dos impérios europeus coloniais coube a Estados cujo ato de existir era mais arranjo de conveniência das potências que a capacidade para evitar a ocupação estrangeira. Tal como o Afeganistão e a Pérsia, entre o Império Russo e o Raj britânico – ou o Butão, o Nepal e o Sikkim, separando a China do império britânico - o Sião salvou a sua independência, prosperou e foi sempre muito cortejado pelos vizinhos britânico e francês.
A Ucrânia federalizada, respeitadora da sua diversidade religiosa, linguística e cultural interna, teria sido um caso de sucesso, corredor de prosperidade e paz entre o Médio Oriente e o Cáucaso, a Rússia e a Europa Central. Porém, a inabilidade dos seus dirigentes, a interferência da UE e a crescente histerização anti-russa da NATO, ao invés de sossegarem a Rússia, nela exasperaram a sensação de cerco e da iminente entrada de um temível adversário numa região secularmente pertencente à Rússia e que faz parte do "mundo russo". Erro fatídico também acaba de cometer a Finlândia, pois, tal como a Ucrânia, não soube tirar vantagem da boa vizinhança que teve com a Rússia nos últimos 80 anos. O futuro dirá se esta entrada do país nórdico na NATO não será o princípio de um longo processo de desnecessários conflitos com o grande vizinho.
Miguel Castelo Branco

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