(Rui Pereira, in Facebook, 04/12/2025)

De cada vez que alguma voz dissonante entra num estúdio de rádio ou de televisão, tem uma enorme probabilidade de ser “soterrado” com a Ucrânia. Isto é particularmente assim no caso de gente ligada ao PCP ou aos movimentos pacifistas. Independentemente da resposta que dê, será depois “soterrado” uma segunda vez pelos “comentários” à sua resposta, a um “tema sensível”, dada a sua posição “insustentável” de “apoio à Rússia e a Putin”, etc.
É meu entender que a Ucrânia é hoje a prova provada de que os comunistas e outras pessoas em Portugal têm razão no que dizem há mais de uma década. Não há porque adotar uma argumentação defensiva sobre o assunto. Nem é uma questão de opinião, mas sim, simples juízo de facto.
1. De há muito que se sabe que a expansão da NATO para leste era um ponto inaceitável para a Rússia, que se veria estrategicamente cercada por exércitos estrangeiros hostis.
2. Quando em 1962 Krushov ensaiou a colocação de mísseis soviéticos em Cuba, junto das fronteiras dos Estados Unidos, o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear dada a reação de Kennedy. A resolução da “crise dos mísseis” deixou-nos algumas lições sobre a psicopolítica e a geoestratégia peculiares a todas as grandes potências. A Rússia de hoje não é nisto diferente dos Estados Unidos de ontem. E se por hipótese o México pedisse hoje a Putin que colocasse mísseis russos no seu território, poderia contar com a mais que certa invasão norte-americana, tal como aconteceu à Ucrânia de Poroshenko, de Zelensky e da NATO com Putin. Fingir que não se sabe disto (nos casos em que é a fingir) é fingir que se está a fazer outra coisa que não propaganda barata.
3. Outro fingimento propagandístico é o de que “ceder” perante a Rússia na Ucrânia é “abrir o precedente” de que as fronteiras se fixam “pela força”. Aqui não é preciso ir a quaisquer fronteiras estrangeiras, bastam as nossas próprias, pouco diferentes hoje das fixadas na I Dinastia em Alcanizes, como resultado das guerras iniciais da nobreza luso-galaica contra a nobreza castelhana. Afonso Henriques, este nome diz-vos alguma coisa? Alfonso VII?… Século XII… Qual “precedente”?
4. As mudanças de regimes, fronteiras, apropriação de recursos de outros povos pelas grandes potências são uma constante da política norte-americana (para não falarmos doutras) desde os primeiros dias do extermínio dos povos nativos nas Américas por portugueses, espanhóis e (futuros) estado-unidenses ao longo do meio milénio que o sistema do capital demorou a formar-se e que hoje continuam (Palestina, Jugoslávia, Iraque, Síria, Líbia, Egipto, Sudão, Nigéria, Irlanda, Angola para não falarmos de todo o resto de África, da Península da Coreia e do paralelo 38, Vietname… poupem-nos…).
5. Desviem os olhos para o outro lado do mapa e digam o que veem no mar das Caraíbas, em frente às costas da Venezuela, detentora dos maiores recursos petrolíferos mundiais? Não é uma esquadra norte-americana e uma promessa de agressão militar dos Estados Unidos que toda a gente parece tratar por cá, como se fosse a coisa mais natural do mundo, dado que Nicolas Maduro é “dos maus”?
É por todo este tipo de razões que uma posição desassombrada e coerente sobre política internacional é um definidor da condição de uma cidadania da esquerda que não se deixa contaminar pelo servilismo generalizado ao dono do império norte-americano, nem aos seus desprezados e desprezíveis capatazes – colonos colonizados – europeus.
Pela coragem e justeza destas considerações, não só o tema “Ucrânia” não deve “soterrar” ninguém que o tenha pensado deste modo, dando conteúdos concretos aos imperativos da paz (não é verdade que “todos queremos a paz”, a rapaziada de “até ao último ucraniano” não estava a pensar propriamente em paz). É por tudo isto também que quem assim pensa tem não só de agradecer colocarem-lhe a questão ucraniana, mas, se não o fizerem, tem de tomar a iniciativa de a colocar. Na Ucrânia o império e os seus apologistas não têm razão e são responsáveis numa larga medida pela tragédia de uma geração de ucranianos em “nome do povo ucraniano”.
Do blogue Estátua de Sal
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