Cheguei à conclusão de que alguns políticos (demasiados deles) não têm uma noção clara da legislação que aprovam. E alguns deles são licenciados em Direito.
Por algumas reacções de que tive conhecimento, cheguei à conclusão de que alguns políticos (demasiados deles) não têm uma noção clara da legislação que aprovam. E alguns deles são licenciados em Direito.
Muito sinceramente, qual é a dificuldade que existe no que respeita à interpretação do texto dos números 2 e 3 do artigo 6º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que transcrevi no texto publicado no Domingo passado
Para que dúvidas não se suscite, volto hoje a transcrever esses dois números
Artigo 6.º (Exclusividade)
1 - ….
2 - O exercício de funções em regime de exclusividade é incompatível com quaisquer outras funções profissionais remuneradas ou não, bem como com a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos com exceção:
a) Das funções ou atividades derivadas do cargo e as que são exercidas por inerência;
b) Da integração em órgãos ou conselhos consultivos ou fiscalizadores de entidades públicas;
c) Das atividades de docência e de investigação no ensino superior, nos termos previstos nos estatutos de cada cargo, bem como nos estatutos das carreiras docentes do ensino superior;
d) Da atividade de criação artística e literária, bem como quaisquer outras de que resulte a perceção de remunerações provenientes de direitos de autor ou conexos ou propriedade intelectual;
e) Da realização de conferências, palestras, ações de formação de curta duração e outras atividades de natureza idêntica;
f) Dos casos em que a lei expressamente admita a compatibilidade de exercício de funções.
3 - As exceções previstas nas alíneas b), c) e e) do número anterior não são aplicáveis aos membros do Governo.
E creio que dúvidas também não se suscitam na mente de qualquer jurista quanto à nulidade do negócio de transmissão de quotas da sociedade "Spinumviva, Lda" que Luís Montenegro celebrou a favor da sua cônjuge, sendo o regime de bens do casamento o da comunhão de adquiridos.
Efectivamente, lamentando eu que este escrito esteja a ser tão fastidioso, é isso que resulta da conjugação dos textos dos números 1 e 2 do artigo 1714º do Código Civil e do artigo 280º do mesmo Código, nos quais está escrito, respectivamente:
Artigo 1714º (Imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei)
1. Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.
2. Consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens.
Artigo 280º (Requisitos do objecto negocial)
1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes
Estão carregados de razão os notários e os conservadores dos vários registos (em concreto, os do Registo Civil e do Registo Comercial) quando se insurgem contra a legislação em vigor que autoriza que vários tipos de contratos possam ser celebrados sem o controle e a supervisão desses profissionais do Direito.
Que se ganhou - ou quem ganhou - com esse alargamento de capacidade funcional de outros juristas?
De uma coisa estou seguro e bem convicto: a certeza e a segurança jurídicas em nada beneficiaram com essa alteração.
Mas, voltando ao assunto em apreço, será que a violação daquela obrigação de exclusividade muito justamente imposta pelo artigo 6º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, constitui a prática de um crime?
Para que uma tal declaração possa ser produzida, é indispensável que estejam verificados os requisitos previstos no artigo 26º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, no qual se exige que ocorra, por parte do prevaricador, uma violação dos deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem.
Mas censura ética e a censura social existem mesmo quando a conduta não assume natureza criminal. Ou, pelo menos, tem de existir se queremos continuar a proclamar que somos pessoas civilizadas e vivemos num país civilizado.
E o mesmo pode e deve ser afirmado acerca da violação de deveres de comunicação ao Tribunal Constitucional que os governantes têm de cumprir, bem como daquele outro estabelecido através do artigo 10ºA do Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de outubro (introduzido pela Lei n.º 17/2019, de 14 de fevereiro), que impõe às instituições financeiras que operam em Portugal a obrigação de comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira as informações relativas às contas financeiras por si mantidas cujo saldo ou valor agregado, no final do ano civil, exceda cinquenta mil euros, cujos titulares ou beneficiários sejam residentes em território nacional.
Neste último caso, são as instituições financeiras que têm a obrigação de comunicação e não os beneficiários das contas, mas aos governantes exige-se que não se sirvam de subterfúgios ou "buracos" existentes na letra da lei para se eximir ao cumprimento das suas obrigações para com a Comunidade, nomeadamente as que são de natureza fiscal e/ou as inscritas em legislação que foi aprovada com o objectivo de combater a corrupção e o branqueamento de capitais - ou, pelo menos, essa foi a justificação apresentada para a aprovação desses diplomas legais.
E afirmar que "não fiz nem mais nem menos do que faz qualquer português", no contexto em que essa expressão foi proferida, constitui, muito claramente, um grave insulto para todos os portugueses e portuguesas que cumprem os seus deveres para com o colectivo nacional.
E é este chico-espertismo que já enoja - pelo menos a mim enoja-me e estou convencido que não sou o único a sentir-se assim.
E esse asco torna-se particularmente acentuado face às declarações, que não adjectivo, de alguns comentaristas que são licenciados em Direito, que distorcem completamente todos os princípios e regras que estão estabelecidas, algumas delas há séculos e não apenas nos países ocidentais, para esta específica área do conhecimento humano.
E a palavra certa é mesmo essa - asco – porque esses comportamentos patenteiam uma eticamente inaceitável desonestidade e até má-fé intelectual.
Haja decência!!!
Na luta política, como em tudo o resto da vida, não pode valer tudo.
Mal estará o país - e mal estaremos nós portugueses e portuguesas - se esta perversidade e esta destruição dos valores da honestidade intelectual e da decência de propósitos e de acções que vem campeando com uma quase completa impunidade, não forem severamente punidos em termos sociais e políticos através do voto popular expresso em eleições livres com a participação de eleitores e eleitoras esclarecidos.
Muito provavelmente, na próxima campanha eleitoral (e, com tudo o que ultimamente tem sido dito e feito seria devastador para a Democracia que o actual governo recuasse na sua intenção de apresentar ao Parlamento uma moção de confiança) não haverá oportunidade para debater os gravíssimos e altamente perigosos problemas que assolam Portugal e o resto do Mundo.
O que é terrível.
Porém, como poderão alguma vez ser resolvidos esses problemas (ou, no mínimo, ser tentada a sua resolução), se não for clara e inequívoca a dedicação dos dirigentes à defesa intransigente da Causa Pública e ao Bem Comum e, de igual modo, a um integral cumprimento da legalidade democrática e das suas obrigações para com a Comunidade?
Parafraseando o título de uma famosa canção do inglês Gordon Matthew Thomas Sumner, conhecido por Sting (do grupo musical "The Police"), eu espero que os portugueses e as portuguesas gostem mesmo dos seus filhos/as e netos/as.
Eurico Reis
Juiz Desembargador Jubilado
Revista Sábado
09 de março
Sem comentários:
Enviar um comentário