Mas quando Aguiar Branco, apertado pelos deputados que exigiam uma reprimenda ao líder do Chega, argumenta que um deputado é livre de dizer o que lhe apetecer, independentemente da bestialidade das suas afirmações, coloca a discussão num patamar acima da ética do debate parlamentar para a nivelar por cima e a colocar neste ponto: o que é que entendemos, afinal, por liberdade de expressão?
É totalmente verdade que as falsidades, insinuações, mistificações, branqueamentos do passado, calúnias, preconceitos e discriminações com que a extrema-direita alimenta o seu crescimento político estão a ter uma eficácia eleitoral assustadora, mas o problema não está só na expressão verbal dessa estupidez, o problema está também em duas terríveis falhas da democracia, que abandalhou a educação cívica e histórica, retirando às sua populações armas culturais para se defenderem desse ataque, e não resolve os problemas económicos atrelados a um processo acelerado de globalização que criou maiores injustiças sociais, maior fosso entre ricos e pobres, promovendo um ressentimento inconsistente que o protofascismo adora.
Começar agora a proibir deputados de dizerem coisas racistas é certamente muito bem-intencionado, mas não passa de uma limpeza superficial do debate político - é o mesmo que meter lixo debaixo de um tapete: ele não desaparece e, mais tarde ao mais cedo, volta a surgir, com pior cheiro, ainda mais putrefacto.
Em prazo mais longo, a escalada do silenciamento do debate político, depois de uma medida dessas ser aplicada, acabará por ser inevitável.
Por exemplo: se podem ser proibidas no Parlamento declarações racistas ou xenófobas, porque não podem ser proibidas frases que ponham em causa a honra de um governante? Ou que acusem um país “amigo” de cometer genocídio? Ou que defenda o pagamento de indemnizações a países estrangeiros? Ou que acuse os banqueiros de explorarem a população? Ou que defendam o comunismo para Portugal?...
O leitor acha que não é possível? Bem, o impensável já está a acontecer: no tempo da epidemia covid-19 tentou-se proibir quem noticiasse possíveis problemas para a Saúde Pública com as novas vacinas. Com o início da guerra na Ucrânia, a União Europeia decidiu, em poucos dias, proibir canais de informação e de propaganda russa. Concertos de música de compositores clássicos russos foram cancelados em toda a Europa. Jornalistas que tentaram noticiar o que se passava do outro lado do campo de batalha foram perseguidos e um deles está mesmo preso sem acusação há dois anos: o espanhol, Pablo González. O ex-ministro da Economia grego Yannis Varoufakis; o cirurgião plástico britânico-palestiniano Ghassan Abu Sittah, reitor da Universidade de Glasgow, foram proibidos de dar uma conferencia em Berlim sobre a Palestina. E Julian Assange continua o seu calvário em Inglaterra por ter dado notícias relevantes.
Aliás, as alianças que estão a acontecer e a legislação que está a ser redigida em alguns países, em alianças entre o “centro-direita” e a “extrema-direita”, mostram como o perigo está, na verdade, na troca desse combate ao racismo pela assimilação ideológica que os chamados “moderados” estão a fazer do discurso xenófobo.
Aguiar-Branco tem razão em defender a liberdade de expressão dos deputados, mas também, por não o admoestar quando ele diz desumanidades, está a ser cúmplice de André Ventura.
Deitar fora o bebé com a água do banho. É este o perigo do debate corrente acerca dos limites da liberdade de expressão e da promoção do racismo e da xenofobia nas instituições democráticas.
Pedro Tadeu
No DN
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