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quarta-feira, 22 de maio de 2024

Aguiar-Branco não tem razão?


É verdade que o presidente da Assembleia da República entra em contradição ao exigir, por um lado, que os deputados se tratem mutuamente com respeito, por “senhor deputado” e “senhor presidente” e nunca por “você” ou por “tu”, mas, por outro lado, aceite deixar passar, sem reparo, a insinuação de André Ventura de que o povo turco é preguiçoso, uma generalização evidentemente racista.

Mas quando Aguiar Branco, apertado pelos deputados que exigiam uma reprimenda ao líder do Chega, argumenta que um deputado é livre de dizer o que lhe apetecer, independentemente da bestialidade das suas afirmações, coloca a discussão num patamar acima da ética do debate parlamentar para a nivelar por cima e a colocar neste ponto: o que é que entendemos, afinal, por liberdade de expressão?

É totalmente verdade que as falsidades, insinuações, mistificações, branqueamentos do passado, calúnias, preconceitos e discriminações com que a extrema-direita alimenta o seu crescimento político estão a ter uma eficácia eleitoral assustadora, mas o problema não está só na expressão verbal dessa estupidez, o problema está também em duas terríveis falhas da democracia, que abandalhou a educação cívica e histórica, retirando às sua populações armas culturais para se defenderem desse ataque, e não resolve os problemas económicos atrelados a um processo acelerado de globalização que criou maiores injustiças sociais, maior fosso entre ricos e pobres, promovendo um ressentimento inconsistente que o protofascismo adora.

Começar agora a proibir deputados de dizerem coisas racistas é certamente muito bem-intencionado, mas não passa de uma limpeza superficial do debate político - é o mesmo que meter lixo debaixo de um tapete: ele não desaparece e, mais tarde ao mais cedo, volta a surgir, com pior cheiro, ainda mais putrefacto.

Em prazo mais longo, a escalada do silenciamento do debate político, depois de uma medida dessas ser aplicada, acabará por ser inevitável.

Por exemplo: se podem ser proibidas no Parlamento declarações racistas ou xenófobas, porque não podem ser proibidas frases que ponham em causa a honra de um governante? Ou que acusem um país “amigo” de cometer genocídio? Ou que defenda o pagamento de indemnizações a países estrangeiros? Ou que acuse os banqueiros de explorarem a população? Ou que defendam o comunismo para Portugal?...

O leitor acha que não é possível? Bem, o impensável já está a acontecer: no tempo da epidemia covid-19 tentou-se proibir quem noticiasse possíveis problemas para a Saúde Pública com as novas vacinas. Com o início da guerra na Ucrânia, a União Europeia decidiu, em poucos dias, proibir canais de informação e de propaganda russa. Concertos de música de compositores clássicos russos foram cancelados em toda a Europa. Jornalistas que tentaram noticiar o que se passava do outro lado do campo de batalha foram perseguidos e um deles está mesmo preso sem acusação há dois anos: o espanhol, Pablo González. O ex-ministro da Economia grego Yannis Varoufakis; o cirurgião plástico britânico-palestiniano Ghassan Abu Sittah, reitor da Universidade de Glasgow, foram proibidos de dar uma conferencia em Berlim sobre a Palestina. E Julian Assange continua o seu calvário em Inglaterra por ter dado notícias relevantes.

Há uma deriva censória no poder Ocidental que atinge a esquerda e a direita e, por isso, a defesa da liberdade de expressão, mesmo quando beneficia um fascista, é prioritária.
E os racistas? A única solução é deixá-los falar (até para não haver ilusões de que eles não existem) mas, ao mesmo tempo, não parar de combatê-los - e aí Aguiar-Branco tem responsabilidades, pois podia, evidentemente, ter criticado André Ventura pelo que ele disse.

Aliás, as alianças que estão a acontecer e a legislação que está a ser redigida em alguns países, em alianças entre o “centro-direita” e a “extrema-direita”, mostram como o perigo está, na verdade, na troca desse combate ao racismo pela assimilação ideológica que os chamados “moderados” estão a fazer do discurso xenófobo.

Aguiar-Branco tem razão em defender a liberdade de expressão dos deputados, mas também, por não o admoestar quando ele diz desumanidades, está a ser cúmplice de André Ventura.

Deitar fora o bebé com a água do banho. É este o perigo do debate corrente acerca dos limites da liberdade de expressão e da promoção do racismo e da xenofobia nas instituições democráticas.

Pedro Tadeu

OPINIÃO

22 maio 2024 às 00:00

No DN

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