«O Mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança»
(António Gedeão)
"Creio que nenhuma outra época tenha sido mais cruel para com os seus
velhos que esta em que vivemos. A geração a que pertenço, e que tentou dar
forma à glorificação da eterna juventude, envelheceu e foi varrida como lixo.
Hoje, reformados em reservatórios de velhos ou em qualquer banco de jardim,
aguardamos pacientemente o fim que se anuncia longo mas penoso: longo porque
conseguimos com sucesso erradicar muitas das maleitas que nos fariam morrer
mais cedo, penoso porque ameaçam não mais sequer nos ouvir.
Todo o “saber de
experiência feito” que acumulámos, o único saber que não se pode aprender nas
carteiras das escolas nem nos bancos das universidades, senta-se agora nas
cadeiras de jardim ou é prisioneiro das camas articuladas dos lares da terceira
idade.
A eterna juventude fala por mensagens que não sabemos enviar nem
receber, comunica por celulares que não conseguimos operar, trabalha por
computadores que não logramos decifrar nem acionar e que parecem conter todo o
saber acumulado digno de registo.
Nós, a quem chamam info-excluídos, sabemos
que o Mundo não cabe dentro dessas máquinas diabólicas e por isso somos
rejeitados ou mesmo descartados: o “saber de experiência feito” não está dentro
das máquinas.
São máquinas que não pensam, ao contrário do que eles pensam, que
não raciocinam, ao contrário do que eles julgam, nem têm capacidade para
processar tudo o que há de mais importante neste mundo: o factor humano! Mas
são tão rápidas a somar zeros e uns que até parecem que pensam e por isso
fascinam…
A “verdade” de hoje passa por estas máquinas que nós próprios criámos
mas que, conscientes das limitações que sabemos terem, apenas utilizámos como
nossos auxiliares.
Hoje, a sua deificação faz com que só quem tem o privilégio
de as compreender possa ser incluído no maquiavélico sistema criado à sua
sombra, a que nós já não pertencemos.
De nós pouco sabem porque não nos podem
seguir pelos telemóveis, não nos conseguem espiar pelas contas dos cartões
multibanco, nem nos registam nas portagens das autoestradas. De alguma forma
não nos controlam e por isso somos obsoletamente adversos e incómodos ao olho
do “Grande Irmão”!
É também por tudo isso que o actual sistema prefere os
jovens: a sua candura torna-os menos avisados a perigos que já conhecemos.
A
minha é a geração da Guerra e dos refractários do Vietname, do Klu-Klux-Klan,
do Flower Power e dos Black Panthers nos EUA, do Maio de 68 em Paris, da
Primavera de Praga e da invasão soviética, da dessacralização do comunismo na
Europa, do despertar dos longos colonialismos na África e na Ásia e da queda do
apartheid nos Estados Unidos da América e na África do Sul.
Por cá, a minha é a
geração da Guerra Colonial, do combate ao fascismo, do 25 de Abril e da
libertação de Portugal e das Colónias. A minha é a geração de tudo isto e de
muito, muito mais! Chamavam-nos então idealistas e sonhávamos com um mundo sem
grandes discriminações, sem grandes desigualdades, sem Grandes Guerras.
Para
isso tinham nascido a ONU, a UNESCO, a Conferência dos Não-Alinhados, a
Organização de Unidade Africana e até a Comunidade Europeia, mas também a NATO
e o Pacto de Varsóvia. O mundo encontrava-se dividido a partir de Berlim e nós
só tarde nos demos conta de que, mesmo algo trôpega, essa divisão nos dava
alguma margem de manobra.
Hoje, o Mundo já não está dividido e a margem de
manobra diminuiu. Já ninguém se questiona se haverá outras fórmulas possíveis
de sociedade nem se defendem já ideais ou ideologias. Esses ideais, ao que
parece, ficaram residentes na minha geração e em alguns jovens rebeldes e
refractários a esta paz mole e quase abjecta que hoje nos querem vender como
única verdade. As ideologias passaram a ser amaldiçoadas como peçonha e ninguém
parece interessado em repegar a sua discussão.
A minha geração sabe contudo, de
saber de experiência feito, que elas são imprescindíveis à construção de
futuros mais coerentes e de sociedades mais justas. Talvez seja por isso que
hoje nos tratam assim! De alguma forma, é a minha geração que assim se trata;
de alguma forma, é a parte da minha geração que sempre negou o valor dos ideais
e das ideologias, que hoje gere, triunfante, o Mundo tendencialmente abjecto em
que vivemos.
Este é o Mundo moldado por eles, à sua imagem e semelhança e tendo
como única “ideologia” a maximização do lucro de poucos, que eles pretendem
legar aos seus descendentes.
Para isso, precisam que todos os outros nem sequer
questionem a possibilidade de outras verdades, a possibilidades de ideais, a
discussão sequer de uma ideologia. Eles pretendem deixar de herança, tal como todos
os tóxicos que criaram - resíduos, produtos financeiros, paraísos fiscais,
tráfego de drogas, influências e armas - esta sociedade, também ela venenosa.
É
por isso que nós, enquanto memória do tempo, memória do Mundo, memória da
Humanidade, lhes somos uma verdade incómoda.
É por isso que a idade deixou de
ser um posto e passou a ser uma incomodidade! É precisamente por isso que a
idade terá de reassumir o seu verdadeiro papel e dimensão: o papel de memória e
de saber de experiência feito.
Há que ouvir os velhos e perceber que neles
reside apenas o essencial, uma vez que já esqueceram tudo o que aprenderam, e
se lembram só de tudo o que viveram.
Resta ainda a esperança e a tranquilidade
de saber que esta cultura só se transmite de avós para netos e que, assim
sendo, nem tudo está perdido.
Esperemos que seja possível, desde os bancos dos
jardins ou das camas articuladas, no longo tempo de que ainda nos permitimos
dispor, passar a palavra que alguns não querem que passe, e assim fazer pular e
avançar o Mundo, «como bola colorida, entre as mãos de uma criança»."
(Fernando Pinto via Facebook)
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