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sábado, 21 de julho de 2018

Esgar de rejeição:

(José Sócrates, in Expresso, 21/07/2018)
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No artigo em que anunciou a saída do PS, José Sócrates defendeu Manuel Pinho. Agora, depois da audição parlamentar, volta a socorrer o seu ex-ministro. Neste texto para o Expresso, critica o Parlamento e não poupa Carlos César.

Portanto, dia cheio. Logo pela manhã, procuradores desrespeitam ostensivamente a decisão de um juiz de instrução que decidiu levar a sério a sua condição de juiz dos direitos e não parece disposto a obedecer ao Ministério Público. Depois, à tarde, vemos deputados atrair um cidadão para uma reunião, acordando com ele o tema a discutir e violando a palavra que lhe deram mal começa o debate. À hora de jantar, um líder político resolve expor, resplandecente, a sua política de justiça: se um cidadão reclama o direito a defender-se apenas depois de conhecer a acusação, já nem precisamos de ouvir mais, escusa de cá vir outra vez, o silêncio condena-o imediatamente. À noite, ainda nesse dia, é possível ouvir um líder parlamentar dizer que o convidado, que se limitou a cumprir o que combinou e a aguentar a deslealdade parlamentar, não se sabe comportar com deputados — foi arrogante e incorreto. No dia seguinte, eis o coro que só é possível ouvir quando políticos e jornalistas estão de acordo no alvo — eia, fogo nele. Bravo.
Parece que todos falam nos termos de um prévio acordo, de uma qualquer convenção minuciosamente negociada, de forma a pôr de lado os direitos individuais e a Constituição da República. Seja como for, é só para dizer que estou à margem desse consenso. O que vejo é um Ministério Público que dirige traiçoeiramente imputações contra cidadãos através dos jornais, sem ninguém lhes exigir que provem imediatamente o que afirmam. O que vejo é deputados tornarem-se porta-vozes, não do povo que representam, mas das autoridades judiciais que, através dos jornais, lhes sugerem as perguntas que elas próprias não puderam ou não quiseram fazer. O que vejo é a indecência parlamentar da armadilha política: não só não cumprimos o que combinámos, como te criticamos porque, afinal, sabias bem onde te estavas a meter. O que vejo são lideranças políticas que pretendem fazer do direito constitucional a responder só depois de conhecer a acusação uma velharia jurídica formal, pronta a ser sacrificada perante uma qualquer oportunidade política para atacar um adversário. Há dias em que é realmente difícil olhar o teatro político sem esboçar um esgar de rejeição.

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