sábado, 19 de julho de 2025

𝗢 𝗩𝗲𝗻𝘁𝘂𝗿𝗮 𝗲 𝗼 𝗦𝗿. 𝗝𝗼𝗮̃𝗼:

O Ventura, que já não é homem, é boneco, um trambolho, como se dizia quando ainda se dizia alguma coisa, inventou um senhor João. Um senhor João com um café em frente à Assembleia da República, o senhor João de quem nunca se sabe o apelido, talvez por não ter, talvez por ser João como há tantos Joões nos discursos dos trambolhos, homens sem rosto, sem dedos, sem voz própria, bonecos de cordel que servem para ilustrar a raiva dos outros, a raiva dos Venturas, que não têm cafés nem ideias nem país, apenas a fúria com que se satisfazem em público como quem reza diante de um espelho.
O Hugo Soares, que não costuma ser coisa nenhuma, fez desta vez o favor de ser. Foi ver, foi perguntar, foi passear os sapatos de deputado pela calçada, e não há, pasme-se, nenhum senhor João com nenhum café em frente ao Parlamento. Não há balcão, não há galão, não há imperial nem tremoços, tão pouco bica escaldada, há é este país delirante onde um trambolho se levanta com um João debaixo do braço e o usa como escudo e como arma, como metáfora e como argumento, tudo isto embrulhado numa cassete de vídeo para TikTok, essa praça pública de idiotas em êxtase, que aplaudem o trambolho como se ele dissesse o que sentem, quando o que sentem é apenas o que ele inventou.
Não há João, nunca houve João, talvez haja um Joaquim ou um Zé Manel, mas isso é outra coisa. O que há é o Ventura, e o que é o Ventura senão isto? Um vendedor de ficções que ninguém devia comprar mas que vendem como pão quente, pão com bolor, pão de mentira. O Ventura diz que há, e logo o país acredita. E se não há, não faz mal, porque já houve nas cabeças dos que viram, nas bocas dos que repetiram, nos olhos dos que partilharam. A realidade não importa, importa o número, o sketch, o milagre. Importa que alguém se tenha comovido com o senhor João, mesmo que o senhor João seja tão real como os olhos do trambolho quando finge que chora.
E é esta a tragédia: o país não acredita no Parlamento, mas acredita no Ventura. Não acredita nos números, mas acredita na história que o trambolho contou, porque a história é simples, cabe numa frase, numa chávena de café, num cartaz. Porque pensar cansa. Porque confirmar dá trabalho. Porque os cafés que não existem são mais cómodos do que os que existem, com contas por pagar, moscas a rondar os bolos secos, e senhores verdadeiros que não votam no Ventura porque têm mais que fazer.
Mas ele está lá. Continua lá. A dizer coisas que não são. A inventar o país em directo. A criar um Portugal de holograma, onde todos estão contra ele e ele é o único justo entre os infiéis, o único puro entre os sujos. E o mais triste não é ele. O mais triste é haver quem acredite. Quem precise de acreditar. Quem deseje com tanto fervor que haja um senhor João, que acaba por vê-lo mesmo sem ele existir.
E é assim que os trambolhos vencem: não com a verdade, mas com a fome que os outros têm dela.
Julho 2025

Nuno Morna

Sem comentários:

Enviar um comentário