A “Operação Plebeu” alcançou um
sucesso ribombante. Nasceu de uma encomenda do tal Presidente da República que
usou os mortos de uma catástrofe natural para jurar que só se candidataria ao
segundo mandato se os incêndios de Verão não sei quê, o tal Presidente que
depois apareceu a sugerir ir recandidatar-se por ser o único português maior de
35 anos com pinta para receber um papa na Portela e levá-lo a passeio até
Fátima, e que recentemente garantiu apetecer-lhe continuar no cargo só para que
a direita seja protegida e mimada a partir do Palácio de Belém dada a
infestação de esquerdalhos. O artista convidado cumpriu na perfeição, superando
as expectativas. O ar risonho do contratante em certos momentos do espectáculo
não fica apenas como expressão de um fundo agrado. É uma validação admirativa,
a laivos embevecida, a um colega de profissão vindo de um mestre na matéria.
Como alguém bem informado disse, parecia o Fernando Santos a babar-se de
felicidade com a exibição do seu Éderzito.
O discurso de João Miguel Tavares
foi de altíssima eficácia para os públicos-alvo em causa: direita profissional,
populistas inorgânicos e infelizes despolitizados. Não falou em Sócrates, nem
tal era necessário para que tudo o que dissesse tivesse esse contexto, esse
subtexto e esse pretexto. O colega do assessor da Casa Civil foi escolhido como
estrela de um feriado nacionalista precisamente para que a condenação popular
do aterrorizador inimigo da oligarquia fique com o alto patrocínio do
Presidente da República, de caminho fazendo-se mais pressão sobre Ivo Rosa e o
sistema de Justiça no sentido de obter a mais extensa e mais pesada condenação
possível. Ignoro mas aposto que a sua pulsão inicial foi a de fazer explícita
referência ao Diabo através da “Operação Marquês” e que rapidamente Marcelo lhe
terá dito que desta vez não dava, havia mínimos de decoro e máximos de
porqueira. Afinal, tratava-se de uma cerimónia institucional e soleníssima, ora
foda-se. Essa limitação, imposta pelo próprio ou ao próprio, aumentou o poder
retórico do texto. A repetição da cartilha direitola decadente desde 2008 – a
dívida, a bancarrota, as leis do trabalho rígidas, as auto-estradas vazias, os
velhos a ocupar o lugar dos novos, o politicamente correcto, a corrupção, as
décadas perdidas – foi pontuando a progressão de um enredo embrulhado em
sentenças vácuas e pedantes, incongruentes e até ilógicas, um lençol de chavões
delico-doces que serviu primorosamente o objectivo de oferecer aos diferentes
segmentos sociais na audiência, especialmente aos mais desqualificados por
limitações cognitivas ou inexperiência de vida, um território de referências
familiares e sectárias. O orador foi a voz dos derrotados do PSD e CDS, dos
deprimidos, dos bisonhos, dos paranóides, dos que expelem ódio, dos saudosos de
Passos Coelho. Visto daí, Portugal é um lugar inóspito e assustador, onde corre
solto o desânimo. O truque sofístico consiste em deixar na sombra o positivo e
apontar a luz para o negativo, apagar o que nos une e colorir o que nos separa,
ser o profeta da guerra civil. É simples e resulta desde o Neolítico. “Eles”
são mais fortes e são maus, são o “outro” corrompido e corruptor. “Nós”, os
puros e vítimas, ficamos neste queixume resignado a lamber as feridas enquanto
não regressa quem nos vai conduzir ao sonho prometido.
Se o discurso tem esses pés com
que a dupla de celebérrimos comentadores deu bailarico e coices no 10 de Junho,
tem igualmente cabeça. Do princípio ao fim, o que se está a vender
explicitamente é o conceito de meritocracia. Dado o endosso de Marcelo, o
aparato mediático da ocasião e a marca JMT, podemos considerar que foi a mais
poderosa acção de propaganda que já se viu no rectângulo e ilhas na promoção de
uma ideia estrategicamente fundamental para o controlo do poder e a anulação da
revolta em sociedades moldadas pela desigualdade capitalista. Não sei se a
vedeta caluniadora concordará comigo mas arrisco sugerir que o conceito não foi
inventado por este Tavares ou qualquer outro. A meritocracia é defendida em
todos os tempos e poisos por quem pretende manter os seus privilégios, daí se
ter tornado uma bandeira ideológica da direita que está bem instalada no topo
da cadeia alimentar. Aqueles que desfrutam de vantagens sobre os restantes
sabem-se sempre ameaçados, temem perder as riquezas e o continuado e facilitado
acesso a mais riqueza, daí a necessidade psicológica de blindarem numa crença
esse usufruto das desigualdades sociais e económicas, quando não também
políticas e judiciais. Essa crença é o “mérito”, a concepção de que vivemos num
mundo onde cada um se basta a si próprio. Se eu agir, se ao agir tiver sucesso,
decorre uma conclusão meritória: o sucesso da minha acção deve-se a mim, ao que
em mim faz com que eu seja eu. Pode ser qualquer factor, como a intensidade do
esforço, a persistência, a escolha acertada do caminho numa encruzilhada, o
salto arriscado sobre o abismo. Se correr bem, essa é a prova de que eu tenho
talento, de que o mundo é aquilo que se move à minha volta e que existe como
prémio. A meritocracia é invariavelmente retrospectiva, é uma contemplação
ensimesmada do resultado de termos obtido uma qualquer vantagem sobre os
restantes – esses que não têm mérito, ou não o mérito suficiente, portanto. A
partir deste culto a nós próprios como autores do nosso destino, dois monstrengos
afligem o meritocrata. O primeiro, de acordo com o zeitgeist, é a “elite”, ou
“elites” para dar melhor conta da grandiosidade do combate, um conjunto de
rivais que dificultam ou impedem que o mérito seja reconhecido e recompensado.
As elites usufruem de privilégios que já não são meritórios, assim corre a
tese, posto que resultam das inércias, cumplicidades e defesas desses
indivíduos que, malvados, não pretendem abandonar a sua superioridade social e
posse de recursos para se verem substituídos pelos que verdadeiramente merecem
estar no seu lugar. É que os recursos são sempre escassos para tanta procura,
daí a luta sem quartel para os conservar e aumentar. O segundo monstrengo é o
sentimento incómodo, embora profundamente consolador, gerado pela constatação
de que a pobreza, as várias pobrezas, inclusive a mediania, a banalidade, são o
inevitável resultado da ausência de mérito. Querem ter casa, carro e médicos
finórios em consultórios modernos e a cheirar bem? Trabalhem, poupem, trabalhem
mais, gastem menos, façam das tripas coração. Corolário: os pobres, na
meritolândia, têm exactamente o que merecem.
Onde é que já ouvimos isso? Em
2011, no auge de uma crise económica mundial onde a Europa ainda não tinha
mecanismos protectores contra a especulação das dívidas soberanas, o então
presidente do PSD decidiu boicotar um plano de apoio financeiro internacional
que teria evitado o resgate de emergência e o cataclismo que se seguiu. Abriu
uma crise política que obrigou a eleições, e na campanha eleitoral prometeu
“acabar com os sacrifícios” e “libertar a economia”. Jurou “não subir impostos,
não cortar pensões, nem fazer despedimentos na Função Pública” se ganhasse. A
solução indolor e instantânea para os problemas do País estava no “corte nas
gorduras do Estado”. Ter afundado Portugal correu bem ao especialista em
aeródromos na Região Centro. Assim que se viu como primeiro-ministro revelou o
seu verdadeiro plano: ir além da Troika. Esta obsessão com uma reengenharia
social que iria fazer dos portugueses as cobaias do fanatismo da austeridade
salvífica veio acompanhada por uma moral meritocrática. Descobrimos com o Pedro
que, embora pobretes desde o fim do ouro brasileiro, tínhamos andado a viver
acima das nossas possibilidades. Se queríamos brincar à qualidade de vida,
havia primeiro que sofrer o castigo. Expurgar a preguiça e a estroinice. Fazer
como o Governo amante do FMI, que acabou com esses luxos asiáticos das viagens
de avião em Executiva e do ar condicionado ligado; para que queríamos ter
dinheiro se não o sabíamos gastar nem o conseguíamos manter debaixo do colchão?
Mais valia que ele fosse para o Norte da Europa onde eles são de boas contas e
gostam de trabalhar. Circunstâncias históricas, estruturais, conjunturais,
ambientais, socais, mesmo antropológicas, deixavam de poder justificar medidas
especiais de apoio e estímulo. O cumprimento do programa de assistência,
desejado fervorosamente pela direita, implicava uma terraplanagem das
diferenças e das carências na paisagem humana. O isolamento social, o desespero
daqueles que já tendo pouco ficavam ainda com menos, a debandada para a
emigração e as emergências nas famílias atingidas pelos despedimentos e pela
redução drástica do mercado de trabalho, tudo isto era despejado sem um pingo
de empatia. Os discursos dos governantes e sua legião de correligionários
mediáticos espalhavam acusações, culpas, desprezo encardido pelos que sofriam o
que poderia, e deveria, ter sido evitado em nome do interesse nacional, em nome
do bem comum. Esta violência meritíssima encantou o João Miguel, passando a ter
em Passos o seu ídolo.
O discurso do presidente das
comemorações do 10 de Junho é um florilégio biográfico. Contou a sua história
desde o nascimento, viajou até à feérica Albufeira, ilustrou o que os pais
fizeram por si no campo das compras a prestações, citou o que diz à Carolina,
ao Tomás, ao Gui ou à Rita, recordou a casa de pasto de um dos seus avós,
ficámos a saber que os seus sogros fugiram de Moçambique com seis filhos,
abrimos a boca de espanto com as distâncias percorridas por uma certa mulher
que criou outra mulher, e partilhou connosco o estado da sua relação consigo
próprio: chegou lá (a Portalegre, completando o círculo heróico ao voltar ao
ponto de partida). Esta atenção a si próprio foi essencial para a identificação
de tantos, inclusive dos mais insuspeitos até à data de serem completos totós.
Ao relatar o seu sucesso, explicando que o mesmo se deve exclusivamente ao seu
mérito – “um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação
à capital e às suas elites” – mérito oficialmente reconhecido pelo Estado numa
festa para o efeito realizada no dia 10 de Junho de 2019, podemos observar como
a propaganda da meritocracia em nada se distingue das técnicas de venda pela
TV. Nestas precisamos de ver o produto em acção, e quão mais real, literal, for
o registo mais adesão vai suscitar no espectador-consumidor. Ali aonde tinha
chegado este craque da indústria da calúnia o produto mostrou ter um desempenho
espectacular. A boa nova passou a ser a de que qualquer um poderia vir a estar
no lugar dele:
"Quando o senhor Presidente
da República me convidou para presidir a estas cerimónias houve muita gente que
ficou espantada, incluindo eu próprio. Mas com o tempo fui-me afeiçoando à
ideia de que talvez não seja absolutamente necessário ter méritos
extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa cada vez mais de um 10
de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns."
João Miguel Tavares, de costas
para os representantes da soberania, a dizer ao povo que um dia poderão ser
eles a estar no seu lugar. Basta que tenham o mérito de não terem méritos
extraordinários para serem convidados. A apologia da meritocracia à portuguesa
a culminar num curto-circuito da racionalidade, uma explosão de contradições
para epater le burgessos, o gozo supremo de uma hipocrisia deslumbrada a deixar
algo em que acreditar: que cada um faça a sua parte, que fuja do convívio com
as elites, que trate da sua vidinha, e, um dia, tal como aconteceu com ele, o
telefone irá tocar… e é o Marcelo.
Estava completada a “Operação
Plebeu"
”.
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