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quarta-feira, 5 de junho de 2019

A extra ordinária Operação Marquês:

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 04/06/2019)
José Sócrates
Depois de 4000 páginas de despacho acusatório, 53 000 de investigação, 77 000 de documentação anexa, 8000 de transcrições de escutas telefónicas, 13,5 milhões de ficheiros informáticos, 103 horas de vídeos de interrogatórios e 322 de depoimentos áudio de testemunhas, o que será mais extraordinário na “Operação Marquês”? Haverá respostas para todos os gostos, agendas e ódios, mas duvido que alguma ultrapasse em espanto e relevância esta: não se ter constituído como arguida Maria Adelaide de Carvalho Monteiro e não se ter constituído como arguido qualquer outro elemento dos XVII e XVIII Governos para além do respectivo primeiro-ministro. Isto é, as pontas da suposta investigação – que supostamente começou com a denúncia de dinheiro recebido da sua mãe por Sócrates na CGD e que terminou com uma acusação onde se diz terem existido supostos crimes cometidos em Gabinetes Ministeriais e Conselhos de Ministros – não constam no processo.
Algo similar aconteceu no “Face Oculta”. Num caso construído sem provas e baseado no relato em segunda mão de Ana Paula Vitorino, alegou-se que Mário Lino acedeu a um pedido ilícito de Vara mas o ex-ministro alegadamente cúmplice nem sequer foi constituído arguido. Porquê? Porque se calculou que, sem provas, sem prejuízo para o Estado, sem mais nada a não ser uma conversa que se diz ter existido com um certo sentido subjectivo, não seria possível fazer-se a Mário Lino o que se ia fazer a Vara – nem se podia fazer a Vara alguma coisa sem por tabela Lino ter de levar igual ou até pior. O temor e tremor de acusar e prender um ex-ministro exclusivamente com provas indirectas e sem qualquer possibilidade de o relacionar com algum proveito material, ou outro, arriscava boicotar a vingança destinada ao asqueroso socialista que tinha ousado ir para o BCP como administrador depois do caos para onde o banco foi arrastado por Jardim Gonçalves e Paulo Teixeira Pinto.
Num certo dia de um certo mês de 2013, Rosário Teixeira e Joana Marques Vidal encontraram-se, a sós ou acompanhados por outros procuradores, e decidiram que era desta que o inimigo nº 1 da oligarquia portuguesa ia ser apanhado, linchado e enterrado. Nessa reunião, adivinho, tomaram decisões sobre a mãe de Sócrates e sobre os ministros e secretários de Estado ligados a Sócrates. Seria possível deter a frágil senhora, levá-la algemada para ser interrogada pelo Carlos Alexandre e de lá ter de mandá-la na ramona para uma prisão feminina qualquer? Isso causaria demasiado ruído mediático, correndo-se o risco de gerar antipatia contra a PGR e simpatia a favor de Sócrates.
Pelo que se decidiu logo ali, imagino, que a pessoa que se iria apontar como tendo sido cúmplice principal de uma transacção fraudulenta no mais grave caso de suspeita de corrupção da História de Portugal iria ficar de fora do processo. E quanto às dezenas de ex-governantes que iriam ser apontados também como cúmplices de decisões supostamente vendidas por milhões vindos do Grupo Lena, do BES ou de quem a acusação se lembrasse de inventar? Idem, aspas, não haveria logística para serem investigados e nem tal era preciso, antes pelo contrário. A aventura seria triunfal mesmo que apenas decapitasse uma das cabeças da Hidra, a mais apetecida. Aumentar o número de arguidos com responsabilidades nos Executivos socráticos traria mais atrasos, mais dúvidas, mas riscos de se perceber que toda essa gente estava a ser presa para ser investigada, devassada e assassinada política e socialmente. Ter Sócrates como troféu de caça, mesmo que dali por não sei quantos anos ele acabasse condenado apenas por fraude fiscal, era só o que interessava garantir. A “Operação Marquês”, logo a partir da sua detenção para ser interrogado, iria ser a sua condenação instantânea sem ser preciso ficar dependente dos volúveis juízes. Os restantes alvos seriam atingidos por associação e contágio.
A “Operação Marquês” iria ser excepcional, algo nunca antes visto na Justiça portuguesa quanto aos recursos disponíveis e quanto ao caudal criminoso das violações do segredo de justiça e dos direitos fundamentais. A PGR só iria avançar se tivesse a certeza de conseguir blindar a acusação mesmo antes de se poder saber qual viria a ser o seu conteúdo. Aceitar arquivar o inquérito caso a investigação nada encontrasse não era uma opção. O suspeito teria de ser tratado como condenado a partir da sua constituição como arguido; a matéria de facto era um tópico quase indiferente, algo se iria apanhar de certezinha absoluta, e o trânsito do dinheiro já chegava para o gasto. O que importava era o simbolismo, o choque e pavor, a exibição da presa derrotada, ferida de morte. Para tal era necessário garantir não só a cumplicidade como a activa colaboração do juiz a quem competia a defesa das liberdades e garantias dos cidadãos. Carlos Alexandre era perfeito para esse papel de carrasco – e não havia alternativa, não havia risco de calhar um juiz que tivesse a mania de querer ser isento. O Ministério Público da santa Joana olhava à volta e via o Presidente da República, o Governo e a maioria parlamentar a pedirem acção impiedosa contra o monstro que os apavorava e que não admitiam ver como candidato à Presidência, via a comunicação social dominada pelos impérios da direita pronta para iniciar um fogo de barragem épico com a sua ubíqua indústria da calúnia, via o magistrado judicial responsável pelo Tribunal Central de Investigação Criminal a arder de desejo para ser a arma divina que limpa o mundo do pecado e dos políticos demoníacos, via um ano eleitoral a chegar para umas legislativas onde era preciso debilitar ao máximo um PS que tinha trocado o manso Seguro pelo bravo Costa. Era desta, 40 anos depois do 25 de Abril voltaríamos a poder assistir a um regime de excepção para julgar criminalmente opositores políticos.
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É tentador ver na entrevista que Carlos Alexandre deu à SIC, em Setembro de 2016, o maior escândalo alguma vez protagonizado por um juiz em funções. Nela, ouvimos referências directas a um arguido num processo ainda sem acusação onde o próprio era juiz de instrução – ou seja, onde se tinha comprometido com o Estado a defender a Constituição e os códigos legais para respeitar os direitos desse mesmo arguido. Para além de ser o processo mais importante na história da Justiça portuguesa por estar em causa uma suspeita de corrupção sobre um primeiro-ministro, o registo usado para violar o dever de reserva a que os juízes estão obrigados misturava a intenção de publicitar a culpabilidade de Sócrates com o culto da sua augusta e proba pessoa de Mação, que ficava como bastião popular e rural contra os corruptos da elite e da cidade. Infelizmente, essa estouvada e torpe manifestação de soberba está longe do que é o supremo escândalo relativo à sua figura e papel na “Operação Marquês”. A suspensão do Estado de direito começou logo após a detenção dos suspeitos quando decretou a prisão preventiva de Sócrates e declarou ter pena de não poder impor uma pena ainda mais grave logo naquela fase inicial e sem sequer se saber quais os eventuais crimes em causa. Continuou com o prolongamento da prisão em Évora, concordando com Rosário Teixeira no deboche de se considerar demasiado arriscado passar Sócrates ao regime de prisão domiciliária sem o uso humilhante de uma pulseira electrónica – e isto apesar do Tribunal da Relação já ter excluído o perigo de fuga. Culminou com uma entrevista à RTP onde considerou uma farsa o sorteio informático que designou Ivo Rosa como o magistrado que liderará a fase de instrução criminal, assim despejando sobre todo o sistema da Justiça portuguesa uma calúnia maximamente agravada pelo seu estatuto. Pelo meio, conseguiu a mudança do Tribunal Central de Instrução Criminal do Campus de Justiça para as instalações da antiga sede da Polícia Judiciária, cuja leitura tanto pode ser vista como gesto político e/ou sintoma de paranóia, e ainda disparou ameaças genéricas para outros magistrados não identificados alertando ter uma excepcional memória. Last but not least, descobrimos que a relação com um certo amigo e o seu dinheiro, numa mixórdia de promiscuidades incríveis tendo em conta que ambos são magistrados, era um bocadinho diferente do que tinha apregoado na TV quando quis condenar na praça pública um cidadão à sua guarda.
A extraordinária responsabilidade, complexidade e cautela exigidos numa investigação com as consequências da “Operação Marquês” pedia um juiz com este perfil pacóvio, justiceiro, megalómano e estúrdio? Ao contemplarmos o modo como o seu desprezo pela Lei e pelos direitos de outrem foram validados pelo Conselho Superior da Magistratura, e ao percebermos que esse órgão é uma entidade corporativa onde a Assembleia da República e o Presidente da República se demitem estrategicamente da sua soberania quando há comunhão de vontades contra o bem comum, ficamos na posse de um retrato onde é todo o regime que apoia e protege Carlos Alexandre. Um retrato onde é cristalino o desprezo pela descoberta dos factos e a condenação dos eventuais criminosos, caso contrário jamais se deixaria de fora uma cidadã sem a cumplicidade da qual não teria existido a descoberta do crime (dizem eles), e ainda menos se deixaria sequer sem investigação as dezenas de governantes que tomaram decisões apenas para que Sócrates enriquecesse de modo ilícito (dizem eles). Em que outros casos cidadãos dados como coniventes em actos ilegais ficam impunes por causa da idade, sexo ou relação familiar com outros delinquentes?
Por que raio a mãe de Sócrates, designada como a ponte entre Carlos Santos Silva e Sócrates para a lavagem de dinheiro vindo da corrupção, nem sequer como arguida foi constituída? E se o Ministério Público acha que existiu um Governo em Portugal que manipulou negócios de milhares de milhões de euros, envolvendo centenas de decisores entre responsáveis executivos, administradores bancários e accionistas da PT e do BCP, só para que um primeiro-ministro pudesse ir para Paris estudar e ficar numa casinha com um soalho ao seu gosto, como é que essa inominável e indescritível perversão da República Portuguesa fica sem investigação e condenação judicial?
A “Operação Marquês” nasceu de uma legítima suspeita a respeito da circulação de dinheiro usado privada e ocultamente por Sócrates, a qual teria de ser investigada necessariamente. Porém, a violação do Estado de direito marca os antecedentes e desenvolvimento da investigação, onde há igualmente legítimas suspeitas de espionagem ilícita sobre Carlos Santos Silva e Sócrates, legítimas suspeitas sobre abusos de poder no Ministério Público antes da abertura formal do processo, legítimas suspeitas sobre manipulação ilícita do sistema de Justiça de modo a garantir que fosse Carlos Alexandre a conduzir o processo até à acusação, legítimas suspeitas de actos criminosos cometidos pela equipa de procuradores de Rosário Teixeira ao violarem o segredo de Justiça, legítimas suspeitas da inexistência de integridade em Carlos Alexandre ao aceitar ser juiz num caso em que à partida já considerava culpado o arguido sem lhe conceder o direito a um processo justo. Tendo em conta que este caudal de violências foi festejado e reclamado como triunfo supremo por parte de Passos Coelho e Cavaco Silva aquando da campanha para a continuidade da sua Procuradora-Geral da República, a heroína a quem fizeram uma estátua de elogios e agradecimentos, fica evidente que a dimensão de linchamento e assassinato de um inimigo político não só supera como torna irrisória a dimensão judicial de se averiguar se um certo cidadão cometeu actos ilegais, seja lá qual for a sua gravidade.
Neste sentido, a “Operação Marquês” é o maior triunfo da direita decadente desde o estabelecimento do Cavaquistão. Ver o PS e a esquerda a colaborarem com este festim sórdido e odiento exibe um regime onde é necessária a destruição de Sócrates por razões de Estado.

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