«A mulher está empoleirada numa cadeira alta, que mais parece um banco
de bar, atrás de um balcão diminuto. Veste um fato preto, sóbrio e elegante, e
sorri enquanto atende os clientes que vão entrando e que não têm sequer espaço
para pousar a pasta ou o saco de mão em cima do exíguo pedaço de vidro que faz
as vezes de balcão. Os homens pousam a pasta no chão, penduram o guarda-chuva
no pescoço, dobram o impermeável no braço e apertam o computador entre as
pernas. As mulheres hesitam mas ficam com tudo nos braços, casaco,
guarda-chuva, mala, saco do computador, mochila, sacos de compras, lancheira.
A cena passa-se numa dependência da CGD, mas podia ser noutro banco
porque são todos iguais. Tudo parece ter sido estudado para colocar o cliente
numa situação de incomodidade e precariedade, para o obrigar a despachar-se
rapidamente e não ocupar o tempo precioso da funcionária que atende. É a mesma
função da música aos berros nos fast food. O objectivo é afugentar rapidamente
o cliente para acelerar a rotação e poder reduzir o número de trabalhadores ao
mínimo.
O minibalcão à entrada, em vez de uma secretária com uma recepcionista,
foi invenção de um génio da produtividade. A funcionária ocupa assim apenas
meio metro quadrado, em vez dos três metros que ocuparia se tivesse um posto de
trabalho confortável. É só poupança. O génio da produtividade esfrega as mãos
de contente. Subliminarmente, o desconforto do trabalhador também lhe transmite
a mensagem de que a sua situação profissional é, como a sua posição física, instável,
e que a sua pessoa é, como o espaço que lhe concedem, insignificante.
Penso em quanto tempo aguentaria eu a trabalhar neste posto, naquela
exposição total, frente à porta, naquele desamparo, empoleirado naquele
inóspito minibalcão de vidro. Não há o mínimo espaço pessoal, não há nada
pessoal naquele espaço nem pode haver, por imperativo físico. Por baixo do
balcão, há prateleiras a transbordar de impressos, e é tudo. Onde guardará esta
empregada o casaco, o chapéu de chuva, a carteira, os sacos de compras, o livro
que está a ler, os desenhos dos filhos, as fotografia das férias, as mil e uma
coisas com que os trabalhadores tornam seu o espaço de trabalho? Imagino que
deve ter, por trás das portas de vidro fechadas aos clientes, um canto para tudo
isso, um cabide, um cacifo. Houve um tempo em que os operários eram tratados
assim mas não os empregados dos serviços. Nos escritórios, os trabalhadores
detinham algum controlo sobre o seu local de trabalho, podiam humanizar o seu
espaço. Agora são todos proletários. E o local de trabalho é apenas mais uma
peça da máquina que se quer oleada e estéril, um local onde encaixa outra peça
chamada “o colaborador”. E encaixa à justa.
Na dependência do BCP onde entro a seguir também há um minibalcão à
entrada. E, a poucos metros, há uma série de cubículos com separadores de
vidro, com secretárias, mas todos tão impessoais como o balcão da entrada. Os
cubículos proporcionam a mesma privacidade que uma camarata, mas o sigilo
bancário é algo com que os bancos apenas se preocupam em relação aos grandes
clientes e esses nunca se sentam nos cubículos de vidro. As secretárias estão
desprovidas de qualquer toque pessoal para poderem ser usadas rotativamente por
diferentes funcionários. É como o sistema de “cama quente” na Marinha. Três
marinheiros a fazer turnos só precisam de uma cama. Nos barcos é por falta de
espaço, aqui é para poupar dinheiro. Tudo foi pensado para deixar bem claro aos
trabalhadores que não pertencem aqui e que nada do que aqui está lhes pertence.
Para deixar claro que, quando se forem, outros, quaisquer outros, absolutamente
igual a eles, os irão substituir, usando as mesmas secretárias, as mesmas
cadeiras, as mesmas frases para garantir aos clientes que irão “propor-lhes a
solução que melhor se adapta ao seu caso pessoal”.
Na Clínica da Luz há pior: ao lado dos amplos corredores e dos enormes
e confortáveis espaços de espera para clientes e famílias, há “postos de
trabalho” encostados às paredes dos corredores que são como minibalcões como os
dos bancos mas sem o banco de bar. Os “colaboradores” têm de aguentar as horas
de trabalho de pé. É verdade que têm o grato prazer de trabalhar para a
Espírito Santo Saúde, uma empresa disputada no mercado, mas deve ser duro para
as costas. E isto é o que acontece à frente dos nossos olhos nas “grandes
empresas”.
Há muito pior. Há os “seguranças” que passam dias e noites num cubículo
sem condições, gelado no Inverno e um forno no Verão, sem uma casa de banho, ao
pé de uma cancela, verificando nomes e matrículas 24 horas por dia. Muitas
vezes em empresas que se gabam da forma como cuidam dos seus “colaboradores”. É
que estes não são “colaboradores” deles. São “colaboradores” de uma empresa
subcontratada e por isso a grande empresa pode negar toda a responsabilidade pelas
condições de trabalho. E há pior. Há sempre pior.
O empobrecimento e o desemprego multiplicaram estas condições degradantes. Afinal, o desemprego é ainda pior. É assim que se desce o “custo unitário do trabalho”. As empresas chamam-lhe “redução de custos”, “rentabilização”. Mas é só desumanidade.»
José Vítor Malheiros
ontem no (Público)
O empobrecimento e o desemprego multiplicaram estas condições degradantes. Afinal, o desemprego é ainda pior. É assim que se desce o “custo unitário do trabalho”. As empresas chamam-lhe “redução de custos”, “rentabilização”. Mas é só desumanidade.»
José Vítor Malheiros
ontem no (Público)
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