(Quanto tempo você vai abusar da nossa paciência?)
Quando eu era criança, o meu pai vivia num forte que parecia um
castelo.
E isso era normal — normal, quer dizer, era extraordinário! Mais
ninguém tinha o pai a viver num castelo, rodeado de mar!
Era normal apanhar o comboio ou a camionete, de madrugada, aos fins de
semana, para ir ao castelo visitar o meu pai. Ele enchia-me de prendas (que
afinal era a minha mãe que levava), fazia-me desenhos, emoldurava os que eu
fazia para ele e eu gostava. Era normal falar com ele através de um vidro com
uma rede de metal e só raramente conquistar um colo, amansando com os meus
lindos olhos de azul inocente o agente que vigiava a entrada do parlatório.
O meu pai era um preso político, o que queria dizer que não tinha sido
preso por roubar bancos ou carros. Quando mais tarde prenderam um primo meu não
percebi o alvoroço familiar: estar preso era normal.
Um dia houve uma revolução e eu percebi que afinal normal era as pessoas não estarem presas e os colos serem um direito.
Um dia houve uma revolução e eu percebi que afinal normal era as pessoas não estarem presas e os colos serem um direito.
A liberdade tornou-se normal e isso queria dizer que já podia cantar em todo o lado aquilo que dantes só podia cantar em surdina ou em casa. Já não era preciso baixar a voz quando chegava à parte do «ou vai-te embora, pulga fascista». Nessa altura, toda a gente saía à rua para participar na liberdade; reuniam, planeavam, decidiam, envolvendo-se naquilo que dantes era normal ser decidido por outros.
Passou a ser normal a política ser feita por todos, que todos tivessem
os mesmos direitos e que a riqueza de um país fosse usufruída em igualdade;
bastava ser-se humano, já não era preciso pertencer a elites. Fez-se uma
constituição para garantir que seria assim.
Para nós, crianças, isso significava que o mundo deixaria de ter dois
lados, um com «prédios bem altos e mais jardins floridos muita luz e muitas
cores», outro com «barracas escuras feitas nem sabe de quê e miúdos a chorar e onde
os brinquedos são pedras e a lama são os jardins», como o Zé Pimpão mostrou à
Maria-dos-olhos-grandes. Só podia ser normal querer que houvesse apenas um lado
do mundo, «com todos do mesmo lado», e que, se não houvesse jardins para todos,
se dividissem os canteiros e, se os canteiros não chegassem, uma flor para cada
um e, se as flores fossem poucas, haveria pétalas, enfim, cheiro, mas todos
teriam igual. Fomos pelo sonho e o mundo tornou-se a nossa casa.
Depois vieram as eleições e afinal não era normal que todos quisessem
partilhar as flores ou as enxadas. Não fazia mal, mais tarde ou mais cedo
haveriam de perceber que a Maria-dos-olhos-grandes tinha razão.
Mas não. Pouco a pouco, começaram a convencer-nos de que a política se
fazia apenas por quem percebia do assunto e o assunto era muito complicado. E
as pessoas confiaram. Confiaram que podiam viver as suas vidas e que os
partidos em que votavam se encarregavam da política. Para muitos, a política
tornou-se uma chatice. A esquerda voltou a ser o bicho papão, que só queria
virar o país do avesso, com essas ideias radicais de dividir jardins,
canteiros, flores, pétalas, enfim, cheiros, por todos os seres humanos. E o PS
e o PSD, com ou sem CDS, passaram a revezar-se no trono, como os únicos
partidos que garantiam que o país não se virava do avesso e que quem tinha
jardins os podia guardar só para si. E muitos deixaram de votar. Para quê, se
já se sabe que eles só se interessam em ajudar os amiguinhos? Para quê, se nada
muda?
Mas aos poucos muito ia mudando. De revisão constitucional em revisão
constitucional, de lei em lei, de governo em governo, fomos perdendo direitos e
ganhando obrigações, fomos passando de senhores a vassalos. As contribuições
que fazíamos para garantir que todos vivêssemos com qualidade, em igualdade de
direitos, foram-se transformado em rendas a pagar pelo privilégio de existir e
viver neste país.
Aos poucos, o Estado tinha sido privatizado e as eleições serviam
apenas para definir os accionistas-governo que iriam assegurar a gestão nos
quatro anos seguintes. E os accionistas começaram a especular na bolsa com a
riqueza que devia ser nossa — que é nossa! E sentiram-se impunes. Aliaram-se
aos comparsas internacionais mais poderosos e, avidamente, decidiram
estrangular a galinha dos ovos de ouro. Sofregamente, quiseram transformar os
vassalos em servos. Em pouco mais de um ano empobreceram milhares para aumentar
as fortunas de dezenas, transformaram direitos em favores, a serem usados com
parcimónia. Começaram a vender bens públicos aos amigos para pagar as dívidas
que contraíam ao jogo nos mercados. Como garantia, os amigos exigiam que nos
reduzissem ainda mais os direitos, que tivéssemos de pagar os favores — o favor
de estudarmos, de termos assistência na saúde, o favor de existimos. Em coro,
asseguram-nos que é tudo normal e que os protestos são coisa de arruaceiros.
A mudança foi tão brutal que um dia olhámos em volta e não reconhecemos
o país. O normal tornara-se absurdo. E o absurdo entra-nos em casa diariamente.
Há nababos com riquezas pessoais de milhares de milhões de euros enquanto
famílias são desalojadas, crianças passam fome, milhares de jovens são
obrigados a emigrar e muitos, novos e velhos, ficam sem assistência médica.
Perdoam-se distracções na declaração ao fisco de milhões de euros em
rendimentos e perseguem-se aqueles que não têm dinheiro para pagar descontos
obrigatórios mas injustos, já que não têm vínculos laborais nem rendimentos
estáveis para assegurar a própria sobrevivência. Condena-se quem rouba duas
latas de comida para animais e enaltece-se quem enriquece, de forma corrupta, à
conta do estado.
Nada do que vemos é normal, mas até quando iremos esperar passivamente
que tudo se resolva? Quando iremos perceber que temos de resistir e combater o
absurdo, saindo à rua e defendendo os nossos direitos?
O que leva um povo massacrado a dizer «basta!»?
Quanto mais tempo passar, mais dolorosa será a nossa luta: a mesa do
comércio, ainda posta e já gasta, poderá acabar como jangada para evacuar
fugitivos da fogueira incendiada pelos outrora cativos.
Queremos fazer a luta com cravos, mas não deixaremos de a fazer se os
cravos não forem eficazes. Os nossos pais não tiveram medo e mostraram-nos que
vale a pena.
No dia 2 de Março sairemos à rua gritando «basta!» e exigiremos que nos
devolvam o nosso país. Nesse dia, levaremos cravos.
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